
O Som ao Redor (2012), Kleber Mendonça Filho.
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Um filme construído lentamente, intenso e fantástico, que é a estreia de Kleber Mendonça Filho em longas-metragens. Ele já era, na época, bastante conhecido como crítico de cinema e diretor de curtas e documentários. O filme se passa em sua cidade natal, Recife, e apresenta um retrato de uma rua de um bairro nobre com ares de documentário, que começa como uma espécie de drama misturado com comédia de costumes, vai se tornando um suspense e termina de maneira inesperada.
O filme tem como foco a história dos moradores dessa rua que, por causa de uma onda de roubos, decidem contratar uma empresa de segurança privada que aparece oportunamente e começa a oferecer seus serviços. Apesar de a história ter um foco nesses homens da empresa de segurança, a ideia vai muito mais para abordar o cotidiano da rua e de seus habitantes de uma maneira envolvente e impactante.
Pra começar, há muito foco na questão do som e dos barulhos, e isso é muito representado pela personagem principal, a Bia, maravilhosamente interpretada pela Maeve Jinkings, naquele ambiente de classe média que inicialmente parece agradável, mas que, à medida que os capítulos vão passando, se mostra cada vez mais complexo e menos agradável, sempre trabalhado com humor mórbido e girando em torno da Bia e da família dela enquanto eles lidam com os latidos do cachorro do quintal ao lado, que atrapalha o sono de todos e vai estimulando o pior de suas atitudes.
O filme cresce nesse tom, com capítulos focados na questão da guarda e da segurança. Esse desenvolvimento vai tornando o filme mais tenso e sombrio, ampliando a história enquanto aborda justamente os elementos sociais e o cotidiano urbano que o Kleber Mendonça Filho costuma explorar em suas obras, como a mistura de gêneros. Ele oscila bem entre drama, humor, suspense e até brincadeiras com o horror. Há uma cena extremamente divertida em que dois personagens entram numa casa vazia para transar e, de repente, acontece algo que parece tirado de um filme de terror fantasmagórico. O diretor brinca muito com as temáticas dos gêneros, com estereótipos e com as imagens e simbologias da vida urbana do Recife, que desenvolvem ainda melhor a atmosfera da história.
Um exemplo é o momento em que ele foca na placa da praia que alerta sobre a presença de tubarões, algo que é realmente associado à praia de Boa Viagem, no Recife. Ele usa isso para apresentar um dos personagens, o Francisco, um homem idoso, viúvo, de cabelos grisalhos e barba branca, que era um latifundiário poderoso, dono de terras e grandes propriedades rurais. Inclusive, aqui, vou chamá-lo de senhor do engenho, porque ele traça um tremendo paralelo com os senhores do engenho do Brasil Colonial. Um dos netos dele é corretor de imóveis e vende as propriedades, enquanto o outro é meio perdido e tem histórico de roubo de carros. Francisco surge como uma figura de autoridade que ainda comanda tudo e quer mandar e desmandar.
Esse paralelo entre passado e presente aparece logo no início do filme, que apresenta várias imagens em preto e branco de uma paisagem rural construída em torno de uma grande casa. A questão da propriedade rural, como se fosse um engenho antigo onde havia pessoas escravizadas, é um elemento importante na temática do filme, O Som ao Redor aborda como traços da escravidão ainda perduram no cotidiano da sociedade atual, pela forma como os personagens se comportam e pela dicotomia das classes sociais, além da maneira como as pessoas daquela rua lidam com seus empregados e com os funcionários que trabalham ao redor.
A chegada de Clodoaldo, interpretado maravilhosamente por Irandhir Santos, é outro ponto importante. Ele é um personagem enigmático que chega cercado de brutamontes, oferecendo serviço de segurança noturno para os moradores e ampliando os temores em relação aos roubos e à violência. No fim das contas, isso cria uma espécie de sentimento de prisão por causa do medo da insegurança, à medida que os moradores se escondem atrás de grades, barras, muros e portões, trancando portas enquanto veem as pessoas marginalizadas das favelas como ameaça, sendo que muitas vezes os responsáveis pelos roubos e pelas violências cotidianas estão ali dentro dos apartamentos, protegidos por suas autoridades, poderes ou classes sociais.
Por isso, Francisco acaba se tornando uma grande representação, e há toda a brincadeira com a placa de tubarão justamente no momento que ele passa pela rua e vai para a praia. As histórias que se formam em torno dele, da Bia e dos seguranças constroem todo o drama, a tensão e o suspense, ao mesmo tempo em que mostram as fissuras de classe, gênero e raça da história da sociedade brasileira. É um filme que vai crescendo devagar e que se constrói aos poucos, e é justamente nessa lentidão que se torna espetacular.
O final é inesperado e impactante, e estimula um misto de sensações. O filme também fala sobre preservação da memória, tema recorrente na obra de Kleber Mendonça Filho. Através de seu ex-latifundiário com ares de senhor do engenho e dos elementos sociais ao redor dele, a narrativa tenta não esquecer o passado para não repetir os mesmos processos no presente e no futuro. Há um passeio pela fazenda abandonada da família, com ares de passado idílico, quando na verdade foi um lugar onde coisas ruins aconteceram. Em dado momento, há até um cinema tomado pela vegetação e assombrado pelo som de um filme de terror, como lembrança das coisas ruins que certamente ocorreram ali, apesar dos personagens passearem por aquele local com sentimentos de memória afetiva.
O Som ao Redor, como o próprio nome diz, é um filme muito sobre sons, ruídos e barulhos cotidianos, mas também é um filme sobre a História e sobre os ruídos da História que seguem ecoando até hoje. Eu gosto demais desse filme, da maneira como ele conta suas histórias e apresenta seus personagens. Só acompanhar a trajetória da Bia com o cachorro já rende momentos sensacionais e bizarros.





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