O jogo Pokémon Go virou febre mundial. E como todo evento que atinge repercussão dessa magnitude, virou objeto das mais bizarras teorias. Enquanto alguns insistem em não entender o jogo, deixando transparecer seus preconceitos, algo muito mais interessante está acontecendo: a retomada de espaços urbanos pela juventude.
No romance A Caverna, José Saramago narra em forma de fábula a história de uma família que abandona a antiga moradia, que possuía uma olaria de onde o patriarca tirava seu sustento, para ir morar dentro de um shopping. Na trama do escritor português, ele mostra sua preocupação com a tendência de que vamos todos cada vez mais nos isolando no meio da multidão, vivendo sempre em ambientes fechados em nome de uma sensação de segurança que é muito bem explorada pelo poder econômico. Após os atentados de 11 de setembro, a lógica do medo virou ainda mais incisiva, nos fazendo abrir mão de direitos como intimidade em nome de uma suposta proteção contra os bandidos.
O shopping center, nesse contexto, virou o símbolo desse tipo de comportamento. Um ambiente totalmente controlado, supostamente seguro, onde todos podem andar livres do medo de sofrer violência. Não à toa que, uns anos atrás, os chamados rolezinhos assustaram público e lojistas: os jovens de origem pobre simplesmente subverteram a regra implícita do local, e sua mera presença em grupo foi suficiente para ativar as paranoias de parcela da classe média.
O geógrafo David Harvey defende a ideia de que existe um direito à cidade, ou seja, o direito de grupos socialmente vulneráveis de ocupar e transformar o espaço urbano, ressignificando a infraestrutura criada pelo poder político, que visa a manutenção de um status quo que beneficia uma minoria. É nesse contexto que se justifica, por exemplo, a ocupação das escolas públicas pelos estudantes, como vem acontecendo no Brasil desde 2015.
Por certo que o jogo Pokémon Go não tem a intenção de questionar esse status quo. Contudo, ele rompe com a lógica dominante até então dos games como algo a ser jogado em ambientes fechados (em casa ou nas lan houses), fazendo com que os jogadores tenham que literalmente sair às ruas para obter um bom desempenho. Não deixa de ser uma estratégia interessante da Nintendo, que ficou muito para trás na guerra dos consoles, e pretende dominar a área mobile dos games (que é a que possui maior potencial de crescimento). Como consequência, nestas últimas férias, tivemos adolescentes e jovens adultos saindo às ruas e ocupando lugares tradicionalmente vazios, interagindo entre si em modo off-line por tardes à fio.
Não é coincidência que as principais notícias contra o jogo foquem no aspecto da segurança. A rua virou um lugar perigoso para quem tem algo a perder. Entretanto, os jogadores pararam de se sentirem acuados e resolveram sair assim mesmo. E aquele pai ou tio mais velho, que fala que no tempo dele que era bom porque a molecada ia pra rua jogar bola, não consegue perceber que hoje seus filhos e sobrinhos estão fazendo o mesmo, só o que mudou foi o objeto da brincadeira (e duvido que ele quando criança recusasse um convite para jogar Atari ou Fliperama).
Ainda há as teorias da conspiração, que afirmam que o jogo é uma ferramenta de espionagem da CIA e coisas do tipo, sem perceber que qualquer aplicativo ou rede social hoje invade a privacidade e recolhe informações dos usuários com o consentimento destes. Até respeitaria esse argumento de quem só acessasse a internet via criptografia e apagasse seus rastros de navegação de forma eficiente. Do contrário, parece aqueles sujeitos antigos que, cada vez que um político dos EUA visitava o Brasil, exibia cartazes escritos “Yankees Go Home”, rejeitando tudo que é estrangeiro. Na nova versão, virou algo como “Pokémon Go Home” – que só passa atestado de que os tão ávidos em rejeitar não fazem ideia do que estão falando.
O grande plot twist dessa história é que eu não jogo Pokémon Go. Aliás, mal conheço a franquia, para ser sincero. Esse texto então não é uma defesa da minha própria diversão. Mas como toda novidade, o jogo pode ser encarado com preconceito ou como potencial para melhorias. Em relação aos games, infelizmente, parece prevalecer fora da mídia especializada o preconceito: arma do imperialismo, da alienação, da criação do demônio, etc. Quando, na verdade, jogos como GTA aumentaram o potencial de se trabalhar estruturas narrativas, e outros proporcionaram outras inovações. Isso raramente é divulgado. No caso de Pokémon Go, é a própria ocupação do espaço urbano que pode ser repensada. Encará-lo como oportunidade é muito mais benéfico do que como lamentação. Os ventos da mudança assustam, mas são inevitáveis – e permitem a quem os entende içar as velas na direção em que entende ser mais favorável.
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