O legado do cyberpunk

Cyberpunk

O cyberpunk é tido como um estilo que já teria encontrado início e fim há pelo menos duas décadas. Seus conceitos e características estão primariamente enraizados a um modo de pensar de uma época diferente da atual, quando as tendências e os valores eram marcados pelo conceito do “faça você mesmo”. Mas será mesmo que o movimento está perdido? Ou apenas se adaptou ao longo dos anos? André Lemos, no livro Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea, conta que o cyberpunk é tanto um subgênero da ficção-científica como um movimento cultural, cujas ideias ainda estão vivas na comunicação contemporânea, que se vê cada vez mais fundamentada pela tecnologia e pelos conceitos de compartilhamento e sociabilidade.

O cyberpunk também é um subgênero literário derivado da ficção-científica que teve grande força durante o final do século XX. O estilo é fruto de uma época conturbada, quando a tecnologia se tornava proeminente e problemas ecológicos, políticos e religiosos assolavam a sociedade. Mas não é um estilo futurista, como muitos enxergam num primeiro momento. Lemos o caracteriza como presenteísta: “a ficção cyberpunk é reflexo do que já acontecia no quotidiano. Por isso, seus expoentes dizem não falar do futuro, mas fazer uma paródia do presente”.

O movimento possui uma cultura particular, que define traços, comportamentos e personalidades daqueles que nele estão inseridos – música eletrônica e/ou industrial, rock’n’roll e suas variações, moda alternativa, atitude anarquista etc. – Ele carrega, sobretudo, um forte teor crítico sobre a decadência da sociedade, condizente com os anseios e temores das pessoas que viviam naquela época, cada vez mais sufocadas por um mundo que parecia estar próximo de um apocalipse, tomado por guerras, doenças, miséria e fome. “O imaginário cyberpunk impõe uma visão ao mesmo tempo cínica e distópica em relação às possibilidades abertas pelas novas tecnologias. O futuro não faz mais sentido e as grandes metanarrativas desabaram”.

O termo foi primeiramente usado pelo escritor norte-americano Bruce Bethke no conto Cyberpunk (1984). No mesmo ano, o estilo se popularizou através da obra de ficção-científica de William Gibson, Neuromancer, que demonstrava ligações tênues com liberalismo, tecnologia e violência. O cyberpunk tinha forte inspiração nestas tendências e se misturava ao lado mais underground da sociedade, tanto que era bastante difundido através de mídias alternativas como fanzines, flyers e similares.

O “cyber” mostra uma relação estreita entre nosso sistema nervoso central e os avanços tecnológicos (ciberespaço, implantes, nanotecnologias) – se isso lembra Ghost in the Shell, não é por acaso que estamos aqui. – A parte “punk” soma, para além do mundo da cibernética, a apropriação de uma cultura que evidencia o princípio de autonomia, o interesse pela aparência agressiva, a simplicidade, o sarcasmo e a subversão da cultura.

O adepto do estilo é aquele cujo conhecimento é normalmente utilizado para protestar contra o sistema e às grandes corporações. Os personagens, frutos de princípios de incerteza da modernidade, são anti-heróis que buscam no dia a dia encontrar soluções para seus problemas existenciais. A tecnologia é a força motriz para que estas soluções sejam encontradas e o cyberpunk, a pintura de artistas tecnológicos.

O movimento surgiu como uma representação do avanço tecnológico dos anos 1980, que aumentou substancialmente o acesso das pessoas à informação e fortaleceu a razão em detrimento do espírito. É um conceito objetivo e voltado para a razão, como é a própria ciência por trás da tecnologia. Lemos também fala que “a máquina aparece como o objeto central de um culto novo, presente, hoje em dia, na febre e fascinação pelas novas tecnologias”.

A tecnologia traz consigo um aspecto místico, quase religioso, que também é inerente à atmosfera do cyberpunk. O filósofo Marshall McLuhan, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada e famoso também por sua máxima de que “o meio é a mensagem”, acreditava que para utilizar estes objetos de comunicação que são extensões de nós mesmos, nós os servimos como se estabelecêssemos uma conexão espiritual com eles.

A humanidade e a máquina estão incorporadas uma à outra. A tecnologia cresce como um meio para se ultrapassar a condição humana. Ghost in the Shell (1989) se aprofunda nestes temas para explorar o místico por trás do cyberpunk ao mostrar um mundo interligado por uma vasta rede eletrônica que permeia cada aspecto da vida. As pessoas tendem a confiar mais e mais na tecnologia, e isso levanta questionamentos inquietantes: O que exatamente é a definição de humano em uma sociedade onde a mente pode ser copiada e o corpo substituído por uma forma sintética? Qual é exatamente o “fantasma” da alma humana em um corpo cibernético? Onde está a fronteira entre homem e máquina, quando as diferenças entre os dois se tornam mais filosóficas do que físicas? A história de Masamune Shirow levantava questões que continuam relevantes ainda hoje, e cada vez mais relevantes à medida que a tecnologia se tornou parte inerente do nosso cotidiano. Estas percepções encontraram paralelos ao longo dos anos em outras animações japonesas como Serial Experiments Lain (1998) e em filmes como Matrix (1999).

Os implantes cibernéticos tão presentes no movimento se tornaram personificações do potencial atingido pela tecnologia no século XXI. Algo sobre o qual Adriana Amaral fala em seu livro Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk.

“Nas ruas, assistimos ao desfile de tecnologias móveis como iPods e outros mp3 players, celulares etc. Palavras do campo da tecnologia como download, blogs, wi-fi são reapropriadas pelas mídias e no uso cotidiano das pessoas. Partindo da premissa de que passamos de um momento de conexão para uma era de mobilidade, visualizamos as tecnologias móveis como ‘herdeiras’ da estética provocadora do movimento cyberpunk original. Em vez de seres com implantes de chips nos cérebros, o envio de mensagens, vídeos, fotos e músicas ao toque do polegar.”

A comunicação é cada vez mais aberta e colaborativa, com informações sendo compartilhadas em tempo real por sites, blogs e redes sociais. A informática se tornou indispensável para a convivência urbana. A Internet, que guarda semelhança com o ciberespaço da cultura cyberpunk, é um território cada vez mais desbravado e mudou a forma como a informação é difundida, tendo ganhado ainda mais força com o crescimento das redes sociais.

A interação é a palavra-chave da cultura contemporânea. Todos são livres para “fazerem por si mesmos”. Esta é a realidade na qual vivemos. A proposta do cyberpunk está aqui, perceptível como um legado que sustenta os padrões da sociedade e da comunicação. É até curioso que atualmente não se fale tanto sobre cyberpunk e seus temas. Mesmo quando grandes expositores do gênero, como Neuromancer (relançado em várias edições pela Editora Aleph) e Ghost in the Shell (com sua adaptação cinematográfica hollywoodiana), estão em evidência na cultura pop. Precisamos mais dessa percepção, desse movimento cultural. Principalmente em uma época conturbada de tecnologia tão proeminente, e de tantas preocupações por problemas ecológicos, políticos e religiosos. Hoje em dia nós vivemos o cyberpunk.