O Poço (2019), Galder Gaztelu-Urrutia.
Ouça sobre o filme: podcast
Um filme que vale muito a pena assistir. Goreng acorda em uma cela com o número 48. Seu colega de quarto, Trimagasi, explica que eles estão em uma espécie de torre na qual os alimentos são entregues através de uma plataforma que vai do nível zero até os níveis mais baixos. Os que estão nos níveis mais baixos conseguem comer apenas a comida que os que estão no topo deixam de sobra e acabam esfomeados e na miséria. Aos poucos, Goreng vai aprendendo sobre a terrível realidade de um lugar extremamente desigual.
O Poço ganhou muito destaque na época da crise do isolamento social por causa do Coronavírus, porque é um filme que fala sobre confinamento. Só avisando que se você ainda não tiver visto, assiste e volta depois porque vai ter spoiler.
O Poço é um filme de ficção científica com aspecto de distopia, uma dose de suspense e bastante horror gore violento, com bastante sangue e muita sujeira. O gore, na verdade, é usado para passar uma mensagem muito forte, o que é muito bem-feito.
As pessoas são presas na torre-prisão por terem cometido crimes, mas algumas também escolhem estar ali. O filme não explica exatamente por que pessoas escolhem estar naquele inferno, mas as s pessoas que conseguem sobreviver ali por escolha própria recebem um certificado, que pode significar uma vida melhor fora dali.
O grande lance do filme é a comida e como esses presos que estão ali naquela torre são alimentados. Eles são alimentados por uma plataforma que vem num banquete que parte cheio do nível zero e chega vazio nos estágios inferiores. Nós só vamos descobrindo aos poucos quantos níveis a prisão tem. Quando vamos chegando mais pro final do filme, nós descobrimos que a prisão, na verdade, tem 333 níveis. E considerando que cada nível tem duas pessoas, significa que existem 666 detentos, o que já é uma simbologia por si só. O filme usa isso pra construir uma crítica cheia de metáforas e simbolismo, e usa principalmente a violência para passar sua mensagem relevante sobre a distribuição desigual de comida entre os presos, algo que nada mais é do que uma crítica à desigualdade do mundo, onde os indivíduos do topo consomem tudo, não ligam para aqueles que estão abaixo e, obviamente, quando a plataforma chega nos níveis mais baixos, as pessoas já estão morrendo de fome e na miséria, e o filme aborda como essa miséria e essa fome acabam desencadeando violências e até canibalismo.
O Poço tenta justamente trazer uma reflexão, inclusive usando aspectos até um pouco mais sutis da história. Porque uma coisa que eu achei bastante curiosa é que enquanto estão ali naquela prisão, todo mês as pessoas são transferidas para novos níveis. O personagem principal começa no 48. Num dado momento, acorda no 202. Num outro momento, acorda no sexto. Ele sai do meio, que a gente pode usar como uma simbologia para classe média e, de repente, tá lá embaixo, com as pessoas que estão morrendo de fome, até que então, ele sobe para o sexto nível, onde ele já tem uma fartura no banquete, quando o banquete chega a ele. E o filme mostra justamente que as pessoas que estão lá em cima não ligam para as pessoas que estão embaixo. Tanto que o filme até começa dessa maneira, falando que existem as pessoas de cima, as pessoas de baixo e as pessoas que caem. Então, é muito uma representação nada sutil sobre o nosso mundo, principalmente quando ele está passando por uma crise. E o momento de isolamento da pandemia, inclusive, acabou favorecendo muito o filme e sua temática, porque as similaridades socioeconômicas não eram mera coincidência. Não acho que tenha sido exatamente proposital. O filme não saiu exatamente com o propósito de pegar um momento de crise da pandemia, mas acabou saindo em um momento em que o debate sobre as temáticas de sua história parecia ainda mais relevantes do que já são normalmente.
Outra coisa interessante do filme é que o personagem principal, o Goreng, vai para a prisão por escolha própria. Ele vai carregando com ele uma cópia do livro Dom Quixote, livro do Miguel de Cervantes, que é bastante famoso, enquanto o companheiro de cela dele, Trimagasi, escolhe uma faca com o sugestivo nome de Samurai Plus. Ao longo do filme, é mostrado que a maioria das pessoas ali escolhem armas, porque elas já sabem que estão indo para um inferno. E um dos questionamentos do filme é justamente esse, porque o Goreng resolve entrar num lugar como esse carregando consigo um livro. Isso, por si só, já tem várias implicações para a história, mas o mais interessante é como que a história do filme meio que segue um pouquinho a ideia do próprio Dom Quixote. Goreng é um cara que parece não entender direito o mundo onde está. E ele acaba aprendendo meio que na marra. Só que ele, num dado momento, encontra a mulher que o recrutou e o colocou lá dentro, que se chama Imoguiri, e ela resolveu entrar ali também por escolha própria, porque ela tem as razões dela. E a Imoguiri quer tornar o Poço num lugar melhor, ou talvez um lugar menos infernal. E ela tenta fazer isso através do que ela chama de consciência espontânea, uma conscientização espontânea das pessoas. Só que o filme mostra que, assim como acontece na sociedade, muitas vezes o diálogo e a conversa não são o bastante, não funcionam o bastante. E aí, num dado momento, Goreng interfere para mostrar que, às vezes, essa consciência espontânea tem que ser despertada pela força. Porque ele mesmo já tá ali há um tempo, e ele já passou por situações horríveis na qual a força foi a única opção que ele encontrou para sobreviver. A verdade é que isso é o que acontece muito hoje em dia, o que acaba muitas vezes destruindo a possibilidade de diálogo. Só que mesmo assim, Goreng ainda assume muito da característica de ser um Dom Quixote na história, porque ele delira um pouco em suas intenções e pretensões ao achar que ele realmente pode alcançar o grande objetivo cavaleiresco de tornar aquele poço um lugar melhor. E num dado momento ele até arruma alguém pra fazer isso com ele, que é o Baharat, um homem que aparece na história quando ele chega no nível 6, e é um homem que tem muita fé e acha que pode conseguir o apoio das pessoas de cima, só que imediatamente ele percebe que isso não vai acontecer e acaba entrando em uma revolução junto com Goreng. Sendo assim, o Goreng seria o Dom Quixote e o Baharat seria o Sancho Pança, e eles decidem que vão descer na plataforma e garantir na base da força que nos primeiros 50 níveis ninguém coma justamente para o banquete permanecer intacto. Com isso, a partir do nível 51, eles pretendem ir concedendo de maneira pontual a comida às pessoas, de maneira racionada, de modo que as pessoas nos níveis mais baixos tenham acesso à comida. A ideia é revolucionária, porém, o poço é um lugar muito mais cruel do que as histórias que o Dom Quixote enfrenta.
No livro do Miguel de Cervantes, o Dom Quixote é um cara que acha que toda aquela história de cavalaria que ele lê nos romances pode ser levada para a vida real e decide viver como um cavaleiro dos romances que ele lê. Só que, no fim das contas, ele acaba descobrindo que a realidade é um pouco mais dura e cruel do que a realidade de um romance cavalheiresco. No fim das contas, os personagens também encaram isso. O Goreng e o Baharat precisam entender isso, tanto que, num dado momento, quando estão descendo, eles acabam encontrando um homem sábio que explica parcialmente a lógica por trás daquele lugar. Ele deixa bem claro que a administração não tem consciência e se eles quiserem, de alguma forma, fazer com que as pessoas que trabalham na administração escutem o que eles estão falando, eles precisam passar a mensagem. E não é simplesmente descendo e dando a comida para as pessoas que eles vão conseguir. Isso é uma parte do processo, mas é necessário algo mais. E esse algo mais é o doce, a panna cotta, que eles decidem levar com eles como um símbolo. Só que, quando eles chegam no último andar, que eles descobrem ser o andar 333, eles encontram uma criança. A criança está ali escondida, deixando implícito na história que ela poderia ser filha de uma das personagens que aparece ao longo da história, a Miharu. Muitas histórias são contadas sobre a Miharu e você nunca sabe exatamente se elas são verdadeiras ou não, mas, quando você chega lá no último andar, você encontra a menina embaixo de um banco e eles, que já estão muito machucados, ficam solidários sobre a garota e decidem entregar o doce para ela comer. É quando eles percebem que a criança é a mensagem, não o doce. Inclusive, eles próprios não são a mensagem. O mensageiro não é a mensagem, e não precisa estar junto com a mensagem para a mensagem chegar ao seu destino. O filme termina com a plataforma subindo com a garota, indo em direção à administração.
Há quem diga até que é torre, na verdade, seria um inferno. E, de fato, até poderia ser. Há um 666 estampado na nossa cara. As pessoas estão ali presas de uma forma que poderia ser um “após a morte” se você considerar, por exemplo, que a Imoguiri tem câncer e poderia já ter morrido. Há a questão da Miharu, que é uma personagem que sobe e desce na plataforma e você sempre fica com a impressão de que talvez ela não exista, e ela também poderia ser um delírio. Há o próprio fato do Trimagasi “voltar dos mortos” e ficar ali assombrando o Goreng durante boa parte da história. Há ainda o fato de o Goreng ser chamado às vezes de messias, o que atribui certo aspecto religioso. E há o fato de ser uma torre com um monte de níveis como se fossem os círculos do Inferno de Dante Alighieri. Mas, particularmente, se esse filme trabalhasse com o conceito de ser o inferno, acho que enfraqueceria a ideia e a história da mesma maneira que enfraqueceria se Caverna do Dragão realmente fosse no inferno (o que não é o caso).
Dito isso, vamos ficar com a outra ideia de final. A história tem um aspecto distópico com um cunho social a nos apresentar, em que a mensagem fica muito mais importante e impactante. O objetivo do filme não é ser um horror sobrenatural sobre pessoas que morreram e foram para o Inferno.
Eu, na verdade, acabei associando um pouco com o filme Expresso do Amanhã (Snowpiercer) do Bong Joon-ho, o mesmo diretor de Parasita. É um filme que também fala sobre essa questão da desigualdade, das classes sociais, de uma revolução para tentar criar uma sociedade melhor, assim como faz o Poço. Ao mesmo tempo, quando chega no final, os revolucionários acabam descobrindo que existe algo ali colocado pela administração para impedir que essa revolução continue. E eu presumo que, se a garota está ali no andar 333, a administração sabe que ela está ali e provavelmente ela está ali justamente para impedir que qualquer tentativa de revolução passe daquele ponto. Porque se alguém tentar levar comida para todos os andares, quando esse alguém chegar nesse último andar, mesmo que reste uma panna cotta, essa panna cotta será dada para a criança. Essa é a esperança da mensagem. Na hora que a criança é mandada para cima, quando o Dom Quixote e o Sancho Pança percebem que eles deveriam enviar a garota plataforma acima, eles percebem que a criança é a mensagem. Então, eu presumo que essa é a esperança.
Ok, não dá para imaginar que uma criança sozinha tenha realmente mudado as condições ali daquele lugar. Mas o maneiro do filme é justamente porque ele propõe esse questionamento. Como se dizia muito antigamente, as crianças são o futuro de uma nação. Então, provavelmente, a mensagem é essa. As crianças são o futuro da sociedade. E provavelmente, esse futuro viria da educação. Ou pelo menos, é assim que eu vejo que o final tenta passar a mensagem para nós. É uma mensagem muito poderosa. É um filme que tem uma mensagem muito forte. É ainda mais interessante porque é um filme em que o diretor e os roteiristas trazem o problema da desigualdade, mas, ao mesmo tempo, tentam trazer uma solução. No caso, a solução seria a conscientização das pessoas, mesmo que para isso seja necessária a força ou uma revolução. E o filme é muito bem-sucedido em sua proposta. O Poço está na Netflix e eu recomendo fortemente.
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