Habibi

Habibi

Habibi

Habibi (2011), Craig Thompson.

O olhar humano sobre seus semelhantes parece estar predisposto a julgamentos morais. Quando se trata de culturas diferentes, então, esta predisposição parece se elevar ao dobro da potência. Muito mais difícil é identificar no outro a si mesmo. No lugar de acusações e exclusão, procurar a compreensão e o amor parece ser a missão como artista de Craig Thompson, o que faz com maestria em sua história em quadrinhos, Habibi.

Nela, somos apresentados a Dodola, uma menina de 9 anos que é vendida pelo pai a um caligrafista, que a toma por esposa. Após este ser assassinado, ela é tomada como escrava, e ao fugir de seus captores leva consigo o bebê Zam, o qual passa a criar como filho no deserto. A partir daí, uma série de acontecimentos os faz se afastarem e buscarem um pelo outro, enquanto crescem e entram na vida adulta, cada um passando por seus próprios sofrimentos e privações. Em paralelo, o autor nos apresenta várias passagens do Corão, apresentadas em forma de fábulas. Como pano de fundo, temos um país árabe fictício, com uma ambientação mais mítica do que propriamente realista.

O grande poder de Thompson é a delicadeza com que conduz suas tramas. Embora em vários momentos as situações vividas pelos personagens sejam bastante fortes e carregadas em sofrimento, às vezes até mesmo cruéis, o autor em momento algum apela à violência gráfica para chocar, nem explora os sentimentos para causar choro fácil em seu leitor. Pelo contrário, neste é despertada uma profunda compaixão, que deve ser capaz de botar seus próprios julgamentos de lado e entender o que motiva tais atos a serem cometidos. A arte é belíssima, evocando a arte abstrata árabe, e justifica os 7 anos de espera pela conclusão da obra. Interessante notar que as páginas onde ele reproduz em tom de fábula as passagens do livro sagrado islâmico possuem um traço com um caráter mais onírico, reforçadas sempre pelas bordas em arabescos.

Um dos pontos polêmicos nesta obra é a violência sexual, que aparece em vários momentos da narrativa. Por exemplo, logo no início, uma menina é violentada por um adulto com quem acabou de conhecer e se casar. Nosso primeiro pensamento é o de achá-lo um monstro, mas esse mesmo “monstro” é capaz de mostrar um carinho genuíno pela menina, inclusive ensinando-lhe a ler e escrever. E isso é só um exemplo! Num contraponto, temos outro personagem que é o pescador, uma boa pessoa, mas que em suas tentativas de fazer o bem aos outros acaba, sem perceber, prejudicando-os, às vezes de forma fatal.

Parte da crítica não conseguiu aceitar esse tipo de abordagem, mas é como foi dito, o que Thompson propõe não é um olhar inquisidor, mas o de tentar compreender todos os personagens como seres humanos, capazes de erros e acertos, boas e más atitudes. O trabalho anterior do autor, Retalhos, mostra que ele foi vítima de abusos sexuais na infância, e como isso o prejudicou. Portanto, ao retomar o tema da violência sexual aqui, é lógico que não é para aprová-la, mas para tentar compreendê-la, e não simplesmente fingir que ela não existe.

Até porque o grande tema desta história em quadrinhos é o amor. Amor incondicional, que incluiu o desejo sexual, mas vai muito além disso. É o amor que traz esperança quando tudo parece perdido, que dá forças para superar obstáculos, que nos faz abrir mão de qualquer coisa pelo bem da pessoa amada. E mais do que isso, é o amor pelo próximo, que é inclusivo, e sobre o qual todas as religiões falam. Poderíamos falar em amor cristão, mas também é o judeu e o islâmico. É para reforçar isto que o autor escolheu a caligrafia árabe e as fábulas do Corão para servir de paralelo ao que vemos acontecer aos protagonistas. E as passagens escolhidas são justamente as que falam de Adão, Abraão, Moisés, Jesus Cristo, ou seja, personalidades que são comuns a outras religiões, enfatizando assim o caráter de semelhante que podemos encontrar nelas todas.

Não à toa o encerramento se dá com uma passagem sufi que diz que Deus deve ser venerado não por se esperar recompensa ou por medo Dele, mas sim por amor (Haab, em árabe). Em tempos em que a religião vem sendo usada para justificar guerras e preconceitos, e a fé parece ser apenas um investimento (vou dar dinheiro para a Igreja pra que Deus me dê em dobro), Craig Thompson nos faz parar e refletir sobre o verdadeiro significado do amor e da experiência religiosa, sem nos querer doutrinar, mas nos convidando a tentar vencer nossos próprios julgamentos pessoais e tentar compreender o próximo. O que nos faz lembrar do poeta Paulo Leminski, cujos versos diziam que “assim como/ eu estou em você/ eu estou nele/ em nós/ e só quando/ estamos em nós/ estamos em paz/ mesmo que estejamos a sós.”