Brimstone (1998), Ethan Reiff e Cyrus Voris.
Houve um tempo em que a TV aberta, mais precisamente o SBT, fazia a diversão das manhãs de domingo com os seriados que exibia. Era a época do auge de Smallville (Pequenópolis?), O Vidente (The Dead Zone), entre outros. A TV a cabo não tinha a força e o alcance que tem hoje em dia. Assistir a uma série inteira às vezes se mostrava um trabalho árduo, especialmente no caso de séries mais obscuras ou de baixa repercussão. O SBT também exibia algumas destas séries, como é o caso de Brimstone, que estreou por aqui depois de já ter sido cancelada nos Estados Unidos e ainda assim conquistou um bom número de fãs. Na época teve até abaixo assinado para continuar a série (algo que acontecia com frequência antigamente com boas séries que eram canceladas), só que não adiantou.
Brimstone foi exibido nos canais Fox, Warner Channel e também AXN de forma extremamente irregular, além de algumas reprises que foram ao ar no Syfy praticamente despercebidas. Por que eu estou falando de uma série que durou tão pouco e nunca recebeu o devido respeito? Porque a série é muito boa! O fato de ter sido cancelada em sua primeira temporada com apenas 13 episódios não se deve a uma baixa qualidade; as questões sobre a série envolvem vários fatores.
Em 1983, Ezequiel “Zeke” Stone (Peter Horton) foi um policial de Nova York cuja esposa, Rosalyn, foi estuprada. Ele perseguiu e prendeu o agressor, Gilbert Jax, que foi inocentado das acusações. Inconformado, Stone matou Jax. Dois meses mais tarde, Stone acabou sendo morto e foi para o inferno pelo crime que cometeu. Ao longo da série, descobrimos que ele era o policial mais condecorado da história de Nova York, e que sua condenação ao inferno não se deu pelo assassinato de Jax, mas por Stone ter sentido prazer em fazê-lo. Quinze anos depois, em 1998, quando 113 almas condenadas escapam do inferno, o Diabo (John Glover) escolhe Stone para voltar a Terra e capturar os fugitivos.
A série é um desses casos de uma boa história, com grande potencial, que não fez o sucesso esperado e acabou cancelada. Grande parte do charme se devia ao carisma dos personagens principais e à química entre os atores Peter Horton e John Glover. Horton é conhecido pelo papel principal em A Colheita Maldita (1984) e, na época da exibição da série no Brasil, Glover estava bastante em evidência por causa do papel com Lionel Luthor, pai de Lex Luthor, em Smallville (embora Glover tenha participado de Brimstone anos antes de atuar em Smallville).
A dinâmica inteira da história gira em torno da perseguição de Ezequiel aos demônios fugitivos enquanto tenta lidar com seu retorno à vida na Terra. O Diabo eventualmente aparece para dar pistas, ou não, sempre criando situações complicadas para o protagonista. Ora ele parece ajudar, ora ele parece atrapalhar. E não importa o que aconteça, Glover está sempre com um sorrisinho sacana que é impagável. Ele rouba cada cena em que aparece.
Stone possui os pictogramas dos nomes dos 113 fugitivos marcados na pele, e sempre que captura um demônio, a respectiva tatuagem desaparece. Ele e as almas fugitivas possuem habilidades sobre-humanas e só podem ser mortos quando sofrem danos nos olhos (as janelas da alma). A cada dia, pela manhã, todas as almas acordam com a roupa que usavam na hora da morte, incluindo os materiais e itens que tinham nos bolsos, recuperados de qualquer defeito ou deficiência. No caso de Stone, ele acorda com seu crachá de detetive, sua pistola completamente carregada e US $ 36,27, a quantidade de dinheiro que carregava na hora da morte. Às vezes a série se esquecia de suas próprias regras, como no episódio 04, “Repentance”, quando Stone leva o casaco furado por um tiro para ser consertado no alfaiate em um dia diferente do dia em que sofreu o dano. Nos primeiros episódios, na verdade, a série parecia ainda estar se encontrando em sua própria mitologia, algo que só toma forma mais consistente a partir do sétimo episódio.
O elemento constante é o Diabo interpretado de forma magistral por John Glover. Ele é malicioso, manipulador e sarcástico, dono de um senso de humor divertido. Ele é quem dá as dicas para Stone desvendar os casos dos demônios e encontrá-los, embora na maioria das vezes as dicas sejam obscuras ou distorcidas para que o resultado seja um pouco diferente do que Ezequiel esperava. Em um dos casos, Stone reencontra o estuprador de sua esposa, Jax, e o Diabo muda as regras do jogo. Para matá-lo Stone deveria atacá-lo nos olhos com a mesma raiva que o matou na primeira vez. Por outro lado, o Diabo também trata Stone com uma camaradagem ambígua, como gostasse de se divertir às custas dele, mas incomodado por ter que depender do ex-policial para resolver o problema dos fugitivos. No episódio 12, “It’s a Helluva Life”, um anjo (que também é interpretado por John Glover) dá a entender que a razão pela qual Stone foi escolhido é por ele ser a única alma no inferno adequada para a tarefa e para receber uma segunda chance na vida.
Ao longo da série Stone precisa lidar com o fato de que sua mulher, Rosalyn (Stacy Haiduk), ainda está viva, e com o relacionamento conturbado que desenvolve com Ash (Teri Polo). No episódio 08, “Ashes”, Ezequiel descobre que Ash na verdade é uma sacerdotisa cananita de 4.000 anos de idade chamada Ashur Badaktu, a responsável pela rebelião que levou os demônios a fugirem do inferno. No episódio é inclusive sugerido que o Diabo teria sido seduzido e enganado por ela para que as almas conseguissem escapar. Como o Diabo não tem poderes na Terra, ele faz um acordo com Stone para que a missão de captura seja cumprida.
Brimstone encerrou com uma promessa de sucesso não cumprida. Nos anos 1980 e 1990, histórias sobrenaturais de cunho religioso eram comuns graças à atmosfera agourenta do fim do milênio, e muitas não iam para frente justamente por causa da temática. A alegação para o encerramento foi a baixa audiência, mas o tema também influenciou. Stone era um homem sem fé e os comentários do Diabo sobre religião eram sempre ácidos e divertidamente controversos. Além disso, a série tinha o que considero sua maior vantagem. Alguns dos fugitivos do inferno eram pessoas que tinham sido condenadas por crimes banais. Em outros casos, como o de Ash, tinham vivido antes de Cristo e estavam no inferno como castigo por não terem levado uma vida “cristã”. Ash cultuava e venerava uma religião diferente da religião cristã e foi condenada ao inferno por um Deus que não era o seu. O interessante da série, e que a faz ser lembrada até hoje, é a forma como aborda os conflitos e questionamentos que existem entre cristianismo, paganismo e ateísmo, e como isso afeta as noções de justiça, vingança, crime e castigo.
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