O surrealismo para as massas de David Lynch

David Lynch

“Vivemos dentro de um sonho, mas quem é o sonhador?” é uma das muitas perguntas que ficam sem resposta ao final de Twin Peaks: O retorno. A terceira temporada da série, retomada após 25 anos para encerrar a história criada por David Lynch e Mark Frost mostra que, mais do que saber quem matou Laura Palmer, a trama nos apresenta um estudo sobre a natureza humana e sua capacidade para o bem e para o mal, em eterno conflito. Vivemos em um sonho, mas quem nos garante que ele não é um pesadelo?

David Lynch é talvez quem melhor retome os ensinamentos do surrealismo. Em obras como as de Luis Buñuel, Salvador Dalí, André Breton e Max Ernst, a ambientação onírica e a incerteza sobre o que é a realidade buscavam retratar a humanidade em sua essência, tentando despir o Homem de todas as defesas construídas pelo ego e chegar ao inconsciente, para com isso romper as amarras da realidade e atingir a plenitude, alcançando assim a verdadeira liberdade. A escola artística sofreu forte influências tanto da obra de Freud quanto do marxismo, e buscava alterar as estruturas vigentes pela arte, com forte posicionamento político, mas não para apoiar determinado político ou regime, e sim revolucionar o próprio pensamento humano. Por isso, o rompimento proposital com o pensamento lógico se justificava, pois apenas com o choque das ideias em sua forma pura, pré-racional, poderia criar as condições ideais para esta revolução da mente.

Lynch retoma essa tradição, com muitos dos seus filmes adotando uma estrutura aparentemente confusa e ilógica, mas ao mesmo tempo criando pontos de empatia com o público, convidando-o a decifrar seus enigmas para não ser devorado pelas imposições do pensamento dominante. A linguagem que ele utiliza é a dos sonhos, assim como os surrealistas. No entanto, o diretor norte-americano acrescenta ao caldeirão suas influências místicas e gnósticas, nunca de forma explícita, mas se utilizando de simbolismos arcanos seja na construção de cenários, seja nas referências dentro da trama ou nos arquétipos de suas personagens. Em filmes como A Estrada Perdida e Mullholand Drive essas influências são mais fortes, mas é em Twin Peaks que talvez essa seja sua maior ambição. Saindo do circuito do cinema alternativo e indo para a TV, Lynch consegue um alcance muito maior para cumprir a sua “missão surrealista”.

Desde sua primeira temporada, ainda na década de 90, o diretor, com a ajuda de seu parceiro Mark Frost, traz a linguagem cinematográfica para a TV, mesclando uma complexa narrativa seriada aos pontos mais reconhecidos das histórias policiais e das novelas. Uma aparente trama simples de descobrir quem é o assassino vai aos poucos se revelando como um microcosmo da dualidade entre o bem e o mal. Afinal, o que levaria o FBI a investigar um assassinato “banal” de um canto esquecido dos EUA? A resposta, descobrimos na terceira temporada, é que nenhum assassinato é banal.

A partir de agora, teremos alguns spoilers sobre a última temporada de Twin Peaks. Embora, francamente, saber o que vai acontecer não faz a menor diferença para a a apreciação da série.

Na nova temporada, Lynch brinca o tempo todo com a expectativa do público. Os dois primeiros episódios lançam um monte de perguntas que ninguém sequer pensava em relação às temporadas anteriores. Novos personagens são apresentados, e sequer suspeitamos qual a ligação deles com os acontecimentos do passado.

À medida em que a série avança, os rostos conhecidos vão voltando. Mesmo assim, em nenhum momento temos certeza de qual será a direção a ser seguida. Tudo isso culmina no já lendário episódio 8, onde o surrealismo chega ao grau máximo e, numa sequência fenomenal de quase uma hora, Lynch mostra o nascimento do mal dentro de seu universo. Sem diálogos, sem explicações, apenas imagens fortes ligadas por uma lógica onírica onde finalmente entendemos a natureza cósmica do mal apresentado da série.

Daí para a frente, a trama vai avançando, e mesmo com momentos estranhos começamos a achar que finalmente pegamos o fio da meada. Até que, no penúltimo episódio, vemos uma incrível batalha onde o bem finalmente triunfa sobre o mal e todos os “do bem” parecem encontrar sua felicidade. Mas aí vem o final do episódio, onde o Agente Cooper de alguma forma tenta evitar a morte de Laura Palmer, e depois vem o episódio final, que joga por terra todas as nossas certezas sobre a trama.

Muitas teorias já apareceram tentando explicar o episódio final: viagens no tempo, realidades paralelas, que tudo seria um sonho (e subteorias surgiram sobre quem estaria sonhando). Mas acredito que todas elas falham porque tentam estabelecer uma certeza, baseada em um pensamento racional, o que, como vimos, não é e nunca foi a intenção artística de David Lynch.

O que esse final realmente faz é desconstruir toda a nossa expectativa sobre o que seria um final feliz. O bandido ser pego significa que tudo terminou bem? Isto não muda o fato de que Laura Palmer foi violentada e morta, e pior, era constantemente abusada sob o silêncio complacente de toda a cidade em que vivia. Podem vir os super-heróis e os superagentes do FBI para querer saciar nossa sede de vingança diante de um caso chocante de violência, mas é a omissão diária da sociedade que permite reforçar a estrutura que banaliza essa violência. Isto porque nenhuma violência deveria ser tolerada. Nenhum abuso, nenhuma humilhação, nenhum se aproveitar de quem é mais fraco deveria ser permitido. Dale Cooper, o superagente que pretendia resolver tudo, termina a série impotente e perdido. Laura Palmer é a vítima que no último episódio tem outra identidade e não lembra de sua trama, até seu grito final de desespero, onde todo o sofrimento reprimido finalmente vem à tona. Ambos são como todos nós: o heroi falível, a vítima impotente.

Sim, é um final triste pra cacete. Mas é ao mesmo tempo um grande aviso: o mal não é externo. Em toda a temporada Lynch brinca com a dualidade do Cooper do bem e Cooper do mal, mas em vários momentos pontua que ambos são o mesmo. Como, por exemplo, na cena em que dois policiais descobrem que ambos possuem as mesmas digitais, riem e jogam o exame fora. Os policiais fazem o mesmo que o público faz todos os dias: ignoram as informações que não se encaixam na maneira como idealizam sua própria narrativa.

Escolher um alvo específico como o responsável por tudo de ruim que acontece no mundo é a saída covarde, pois se quer encontrar o mal, procure primeiro dentro de si mesmo.

Combata ele dentro de si e só assim sairá vitorioso. Se quer combater “o sistema”, primeiro identifique o sistema dentro de você. A revolução dos surrealistas não é revolução dos burgueses nem a do proletariado. É a revolução da mente, e enquanto cada um não fizer sua própria mudança, continuaremos sendo os heróis impotentes que não conseguem mudar o mundo.