Há, entre os estudiosos (e praticantes) da magia, um conceito que certamente é caro a todos: o da iniciação. Não importa a tradição a que você se filie, se isso implica ficar nu sob a lua cheia ou enfiar um dedo na tomada, aquele que toma o caminho da Arte (como chama o Alan Moore), necessariamente tem que ser batizado (e se você achou meus exemplos absurdos ou engraçados, lembre-se de que a maior parte da literatura sobre o assunto traz implicações de que esse “chamado” normalmente é respondido com um encontro com criaturas que, na melhor das hipóteses, podem ser consideradas como de “outro(s) mundo(s)”), e esse batismo sempre tem um preço. Em alguns casos, é a loucura; noutros, mais raros, é o conhecimento; outros ainda, são tomados pela fome.
Mircea Eliade, em seu robusto O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, nos lembra que são quatro as maneiras de um indivíduo receber poderes xâmanicos. Duas delas, consideradas aquelas que geram xamãs mais fracos, envolvem a vontade própria (pirou na bebedeira na sua festa de 40 anos e tá com a barba toda vomitada? Diz que vai virar um bruxo e se vira pra dar um jeito nisso depois) ou por imposição do clã (basicamente, como bem sabemos cá na roça, aqueles indivíduos esquizos que vivem à margem, caem pela tabela e jogam fliperama com o caixa-eletrônica: tudo xamã! E a sociedade não só deixa, como estimula, seja como uma punição1 ou realmente porque bateu o desespero e o jeito é aceitar a ajuda que aparece. As outras duas maneiras são mais tranquilas, embora também carreguem lá o seu peso: a vocação espontânea é um negócio assim, tipo talento. Ou você tem ou não tem. E se você tem, pô, bicho, é vacilo não usar. A outra é uma parada meio bizarra, tipo o pai rico que não quer deixar o filho abrir uma padaria gourmet porque tem uma empresa com o nome da família que precisa do herdeiro que só pensa em pão pra tocar o negócio. Agora, substitui o pão por carne crua e a gente chega em Raw.
Você já ouviu falar sobre o filme, já leu a resenha e até já deve ter trombado com ele na Netflix. Mas esse texto fala para as pessoas que já viram o filme, ou pra quem não dá a mínima para SPOILERS. Você é um desses? Então, bora lá, falar sobre cabelo.
(Não era carne crua a parada?, você pergunta. Também, também, mas antes a gente precisa falar sobre cabelo.) Ou melhor, sobre o bezoar. Qporréssa? Boa pergunta, mas é cabelo. Sabe a bola de pelos que seu gato solta em cima da mesa na hora que você tá jantando? Bezoar. Os veados campeiros também produzem essas coisinhas, mas se algum deles vomitar na sua mesa de jantar, é porque você deve ter uma casa muito estranha.
Tem bezoar de todo jeito. Quer dizer, de outros jeitos que não cabelo. Nem são tantos assim, tem gente que acumula coisas no estômago e cresce algo lá, que nem a pérola na ostra, pedras no estômago... Mas o lance aqui é cabelo2. Tá ligado na cena em que a protagonista de Raw, Justine (interpretada pela ótima Garance Marilier) debruça no vaso e, pelo que parece uma eternidade, vomita cabelo? Então, você pode dizer que é porque ela estava comendo as madeixas na cena anterior. Eu digo que aquilo era um bezoar. E, mermão, quando você bota uma parada dessas pra fora tu tá, ó...
Seguinte, você já deve ter sacado que o filme da Julia Ducournau fala de um bocado de coisas. Que ele é um líbelo contra os trotes universitários, acho que tá claro até pra quem não viu. (Nem na época em que eu esfregava chouriço na mesa suja de cachaça e comia, eu encarava comer rim cru de coelho.) Que o filme também fala sobre como algumas pessoas não estão prontas para a vida adulta e o quanto é difícil para elas entrarem nesse estranho e (perdoem) cabeludo novo mundo. E é aí que o filme ganha escopo pra ser muito mais do que se mostra.
Recheado com ótimas elipses temporais, o filme é muito econômico em momentos que uma produção americana, por exemplo, aproveitaria para expor os temas centrais da história. O canibalismo (que é leve, só uma pessoa é realmente morta para virar lanche) serve como metáfora para o descontrole que toma Justine e sua irmã, Alexia, mas além da metáfora pura e simples, ele também nos apresenta uma mitologia muito própria do filme, que está ligada as diversas iniciações que circundam a família de nossas “heroínas”.
Porque se você é de uma família canibal e insaciável, colocar as suas filhas (que não sabem que são dessa estranha estirpe) para estudar na mesma faculdade onde seus instintos mais primitivos tão sempre implorando para serem despertados é, no mínimo, meio cruel. Mas todos os pais fazem isso, né? Te chutam a bunda e te enfiam à força na realidade. Não fazem? Deveriam.
Do que mais podemos chamar esse filme senão de uma grande jornada iniciática, com um gore na medida certa e muitos motivos para revisitá-lo e perceber que cada sequência marcante tem, pelo menos, um elemento ligado à descoberta do corpo, do sexo, da fome insaciável que toma conta das pessoas desde a juventude (cenas como a da orgia-rave e o funk satanista, necrófilo e feminista em frente ao espelho denunciam isso ainda mais) e, no caso de Justine, pula a adolescência para arremessá-la a uma vida para a qual ela não estava preparada. Daí você pode falar que eu tô falando coisas, tô com delírios de um cigano russo desequilibrado ou, sei lá, tô querendo te empurrar o papo de que um filme de terror é, também, sobre magia.
Tá certo, mas pro caso de você não ter percebido, filme de terror e magia tão, ó, ali, no limiar da coisa. É só você envesgar um pouquinho que as imagens se fundem e o entendimento chega. Ou, se o entendimento te perturba, sugiro a leitura da décima edição de Promethea, do Alan Moore, onde as relações entre sexo e magia são didaticamente explicadas.
Mas o papo não era terror e magia? A descoberta do sexo e tudo o que vem com ele, meus amigos, ainda mais quando você também descobre que faz parte de uma família de súcubos sedentas de sangue e, a julgar pela aparência do papai quando ele tira a camisa no final do filme, sexo, mostra que tá tudo conectado. E como não estaria?
Justine chega ao final do filme um pouco menos crua, assim como o público, que depois da peia, também deve se decidir sobre as lições aprendidas em mais este belo ritual de iniciação. Porque, afinal, a vida é formada por ritos após ritos, e muitos deles oferecem a oportunidade de começarmos, de novo, a pensar as coisas por um outro prisma.
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1 O último parágrafo de Satíricon, de Petrônio, fala sobre uma espécie de punição à moda de Marselha, onde pegam um sujeito pra Cristo e o dão de comer, beber, vestir, dormir e trepar do melhor, por um ano, até que na data marcada o fazem dar a volta na cidade, onde é coberto de vênias e eventuais pancadas, para enfim ser jogado ao mar do alto de um rochedo. Aqui na minha cidade repetimos o feito com doente vontade, sempre sacrificando um bêbado que serve como palhaço da cidade. Magia pesada na cara de todo mundo e fingem que não estão vendo. Lembra alguma coisa?
2 David Soares escreve o conto O Bezoar, para o livro de contos Trevas Fantásticas. A história, que faz uso de boas técnicas narrativas, fala sobre um rapaz que tem problemas para domar o cabelo. Na tentativa de encontrar um corte ideal, um barbeiro sugere o uso de certos vermes que comem cabelo, dando o corte tão esperado. Os tais vermes despertam um bezoar que vive dentro do protagonista e o rasga por dentro, com um alerta médico final que parece evocar a reviravolta final de O Travesseiro de Penas, de Horacio Quiroga, de que todos nós corremos o risco de sermos contaminados com moléstia semelhante.
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