Teoria e prática do Sigilo

Sigilo

Na coluna anterior, falamos de Austin Osman Spare, o ocultista inglês que desenvolveu a técnica de sigilização ou criação de sigilos, adotada na década de 1970 pelos criadores do que viria a ser conhecido como Magia do Caos. Spare argumentava que os sigilos substituíam com vantagem toda a parafernália da Magia Cerimonial, criando um canal direto de comunicação entre o mago e seu próprio inconsciente.

Na coluna de hoje, vamos aprender como é a técnica propriamente dita, para que você possa verificar por si mesmo se Spare tinha ou não razão.

Primeiro, selecione o desejo que você quer realizar através do sigilo. Digamos, só para ilustrar, que você é uma alma caridosa e quer que a DC pare de fazer essas bombas que ela vem detonando no cinema nos últimos anos. Claro que é só um exemplo. Na prática, é melhor se ater a desejos mais fáceis de realizar, como a cura do câncer ou a paz mundial. :p

O passo seguinte é condensar o desejo sob a forma de uma frase, direta e sucinta. No vocabulário da magia do caos, o desejo que você quer realizar chama-se intento e a frase que o resume é a declaração (ou afirmação) de intento. No nosso caso, a afirmação do intento ficaria mais ou menos assim:

QUE A DC FAÇA BONS FILMES

Tradicionalmente, costuma-se cortar as letras repetidas. Não existe nenhuma razão esotérica para isso, é só uma questão estética. Como as letras serão a matéria-prima do sigilo, quanto menos letras, menos atravancado o sigilo vai ficar e, consequentemente, mais simples: de fazer, de focar, de ativar.

Na Magia do Caos, simplicidade é tudo.

Então, reduzindo a declaração de intento com a eliminação das letras repetidas, temos:

QUEADCFBONSILM

Agora vem a parte divertida do processo, que é combinar a forma das letras para criar o corpo do sigilo. Use o seu senso estético e brinque com o desenho das letras à vontade, até chegar a uma forma gráfica que te pareça adequada ou satisfatória. Aqui, não existem regras. Alguns caoístas recomendam envolver o sigilo numa moldura redonda, para ajudar a concentrar o foco, e outros usam as letras O ou Q (quando estão presentes na declaração de intento) para formar a moldura. Já outros acham que, pelo contrário, conter o sigilo dentro de uma moldura limita o seu alcance. Escolha o ponto-de-vista que fizer mais sentido para você. Afinal, o objetivo do sigilo é mobilizar a energia do teu próprio inconsciente para realizar o desejo, portanto é ele quem precisa ser convencido. Faça experiências, brinque à vontade com as possibilidades, até encontrar a perspectiva que achar melhor.

Na Magia do Caos, perspectiva é tudo.

De volta ao nosso exemplo, alguns sigilos possíveis que se poderia construir a partir da afirmação do intento:

Sigilo

De novo, as únicas regras são as que você mesmo definir, e só você pode dizer quando chegou à forma final do sigilo.

Além disso, a partir dessa técnica básica, é possível desenvolver n variações, à escolha do freguês. Por exemplo, o próprio Spare nem sempre usava o método da redução de letras. Às vezes, ele preferia criar o sigilo usando desenho automático, deixando a caneta correr solta pelo papel, enquanto a mente entrava em um estado de relaxamento.

Há quem combine os dois métodos, criando o corpo do sigilo com desenho automático, mas recitando a forma mântrica do sigilo para ajudar a mente a se concentrar no intento. A forma mântrica ou sigilo mantrificado é criada recombinando as letras da declaração de intento para formar uma nova palavra, que possa ser repetida automaticamente, como um mantra.

A forma mântrica do nosso exemplo (QUE A DC FAÇA BONS FILMES) poderia ser:

NEDIFU BAQCOSLM

(que se poderia pronunciar como nedifu baquecoselm)

ou

EMDQUC ISALOBNF

(endcuc isalobanf)

ou ainda

ODFINU QSMEBACL

(odfinu quesmebacol)

Quando uso um sigilo mantrificado, eu, particularmente, gosto de combiná-lo com um pouco de pranayama. Se o mantra consistir em duas palavras, como no exemplo, eu recito a primeira ao inspirar, visualizando as forças do universo convergindo para o sigilo, e a segunda ao expirar, imaginando o sigilo se expandindo para realizar o desejo codificado nele. Se for uma palavra só, recito OM ao inspirar e o mantra ao expirar. Tudo mentalmente, que, no Tantra hindu, é considerado o modo de recitação mais eficaz.

Agora que o sigilo foi concluído, está na hora de ativá-lo ou energizá-lo. Pioneiros da magia do caos, como Jan Fries, autor do seminal Visual Magick, consideram essa etapa desnecessária. Para eles, o ato de construir o sigilo, se feito com plena atenção e a consciência totalmente concentrada na tarefa, já é energização mais do que suficiente. Embora fundamentalmente eles tenham razão, ativar o sigilo é uma etapa tradicional do método e, pelo menos no início, pode ser útil, nem que seja como uma maneira convencional de sinalizar para o inconsciente que o sigilo está pronto para ser implantado (e implementado).

Há várias maneiras de se energizar um sigilo. A mais popular, nem preciso dizer por que, consiste em usar a energia sexual do orgasmo para ativá-lo. Seja durante uma relação sexual a duas ou mais pessoas, seja com masturbação, o truque consiste em contemplar o sigilo no momento do clímax. Para isso, alguns penduram o sigilo na cabeceira da cama, outros o desenham na testa d@ parceir@. E há quem prefira gozar diretamente sobre o sigilo.

Esse método de ativação ficou famoso quando, enfrentando o risco de cancelamento de seu gibi-grimório, Os Invisíveis, Grant Morrison pediu para os leitores se masturbarem furiosamente a fim de salvar a revista.

A revista foi salva. :)

Mas, apesar do entusiasmo que o método desperta em vários caoístas, especialmente na molecada, o fato é que a masturbação está longe de ser a única e talvez nem sequer seja a melhor maneira de ativar um sigilo.

Como lembra o psicólogo Charles Tart em States of Consciousness, em termos psicológicos, energia é igual a atenção. Ativar o sigilo é concentrar sobre ele toda a tua atenção, pelo máximo de tempo possível.

Se você já estudou alguma coisa sobre a dinâmica da hipnose, deve saber que um estado de consciência caracterizado pela atenção hiper-concentrada em um ponto é a definição mesma de transe.

Em outras palavras, o sigilo é ativado pela atenção concentrada num estado de transe. O orgasmo é um estado de transe desse tipo: durante a fração de segundo do gozo, a atenção fica totalmente focada na sensação pontual de prazer, que pode ser direcionada para o sigilo como se fosse um raio laser.

Mas o que o orgasmo ganha em intensidade, perde em duração.

Na minha experiência pessoal, estados de transe menos frenéticos, mas mais duradouros, como os alcançados por meio da meditação ou enteógenos, tendem a ser mais eficazes.

Uma técnica que eu recomendo para quando você se cansar de brincar de usar a masturbação para energizar o sigilo (rs) é a adaptação de uma técnica tântrica chamada trataka (“olhar ou contemplar” em sânscrito), combinada com o sigilo mântrico.

Sente-se confortavelmente, de preferência com as pernas cruzadas, com o sigilo gráfico à altura dos olhos. Respire recitando mentalmente a forma mântrica do sigilo, ao mesmo tempo em que olha fixamente para o desenho do sigilo, de maneira relaxada, mas sem piscar os olhos. Sempre recitando o sigilo mantrificado, continue olhando para a imagem pelo máximo de tempo que aguentar.

Não se preocupe se os olhos começarem a lacrimejar. De acordo com os yogues, isso é até bom, porque ajuda a limpar os olhos, e muitos praticam trataka unicamente com esse objetivo.

Se a atenção se desviar do sigilo mântrico e você perceber que a mente começou a devanear sobre outras coisas, apenas volte a se concentrar na repetição do mantra, sem se irritar ou se recriminar.

Quando os olhos não aguentarem mais e se fecharem sozinhos, continue contemplando a imagem residual que se formou por trás das pálpebras fechadas, até ela se dissipar totalmente.

Uma vantagem desse método é que, como é essencialmente uma prática de meditação, ele pode ser repetido diariamente, reforçando o intento, até o desejo se realizar (ou você transcender o desejo e alcançar a Iluminação, mas essa é outra história). Aqui, porém, é preciso cuidado para não ficar obcecado, porque a obsessão acabaria ativando, não o sigilo, mas o maior inimigo da magia (ao lado da descrença): a cobiça pelo resultado ou lust for result.

Uma das premissas da Magia do Caos é que a magia é executada, não pela consciência, mas pelas forças que se agitam nas profundezas do inconsciente. Para isso, no entanto, o ego precisa sair do caminho, a fim de não bloquear o fluxo do inconsciente. E nada é mais eficaz para estancar o fluxo da magia do que um ego ansioso pela realização do desejo.

Por esse motivo, inclusive, a maioria dos autores recomenda que o passo final da sigilização deve ser esquecer o intento e/ou destruir o sigilo.

Não importa quanto trabalho deu para criar e ativar o sigilo, ele é apenas uma ferramenta, à qual a mente não deve se apegar. Depois de cumprir sua função, o sigilo pode ser queimado, enterrado, jogado num rio ou simplesmente na lata de lixo, casualmente ou com toda a pompa e circunstância que você achar necessário para se convencer de que a forma do sigilo foi destruída.

Esquecer o sigilo é mais delicado – e mais importante. É claro que você não vai (ter como) induzir uma amnésia seletiva e esquecer literalmente do sigilo. Mas é fundamental não ficar pensando nele a toda hora. E se perceber que, sem querer, começou a se perguntar se o sigilo deu certo, se vai demorar para o desejo se realizar etc., deliberadamente desvie a atenção para outros assuntos.

Mas a sigilização funciona?

Essa, honestamente, é uma pergunta que cada um vai ter que responder por si mesmo. É possível que você seja bem-sucedido desde o primeiro sigilo. É possível que precise fazer algumas experiências, seguindo o caminho da tentativa e erro, até descobrir o que funciona para você. Finalmente, também não é impossível que nenhum sigilo jamais funcione, especialmente se você abordar a prática com um espírito de ceticismo. Lembre-se, é preciso convencer o teu inconsciente a realizar o desejo, e como você vai convencer o inconsciente se você próprio não estiver convencido?

Na Magia do Caos, convicção é tudo.

Aqui vão algumas recomendações, se você quiser tentar:

- Especialmente no início, não escolha desejos muito complicados para sigilizar. À medida que for ganhando prática e convicção, pode sigilizar desejos mais complexos, mas de início, escolha coisas simples. Desnecessário dizer, desejos de alcance global, como a cura do câncer ou a paz mundial (ou que a DC faça bons filmes), provavelmente estão fora do escopo de qualquer pessoa isolada.

- Pelo menos no começo, evite desejos nos quais você tem um grande investimento emocional. Vai ser praticamente impossível evitar o lust for result se você fizer um sigilo para conquistar o crush ou ganhar na loteria (ainda mais se você estiver com dificuldades financeiras, e quem nunca?). Em Ilusões, de Richard Bach, quando o protagonista está aprendendo uma técnica análoga à dos sigilos, ele deseja que apareça uma pena azul. Tá de bom tamanho pra começar.

- Tente abordar a prática com um espírito lúdico. Desenhar e ativar o sigilo vai ser muito mais produtivo se você se divertir, em vez de trazer uma aura pesada de Mago Sério Fazendo Algo Importante que os Leigos Não Entenderiam. Have fun.

Mas por que os sigilos funcionam? Ah, essa já é uma outra pergunta. Tl;dr: ninguém sabe. Mas o que não falta são hipóteses, e nas próximas colunas, vamos explorar algumas dessas hipóteses.

Inclusive a minha.