Caligari! (2017), Alexandre Teles.
Nos últimos anos, surgiu nos quadrinhos brasileiros a tendência de fazer adaptações de grandes obras de outras mídias, como a literatura e o cinema. Embora a maioria das publicações surgisse com um interesse mais comercial, ligado a um programa de compra de livros pelo governo federal para escolas públicas, hoje cancelado, alguns autores buscaram algo mais autoral, se aproveitando da mídia dos quadrinhos para realizar trabalhos únicos em sua maneira de contar uma história.
Um dos melhores exemplos deste segundo tipo de trabalho é o álbum Caligari!, de Alexandre Teles. O autor brasileiro fez uma adaptação ao formato dos quadrinhos do clássico do Expressionismo Alemão O Gabinete do Doutor Caligari, dirigido por Robert Wiene com roteiro de Hans Janowitz & Carl Mayer. Publicado pela Editora Veneta, a obra nos brinda com um estilo único, a utilização do método da monotipia, cuja arte em preto em branco remete ao ambiente inquietante e onírico da obra original.
Sobre o método da monotipia, Teles nos esclarece: “Entre 2005 e 2011 fiz parte do ateliê coletivo Prensa, nesse período eu desenvolvi meu trabalho de gravura. Em 2010, trabalhei com calcogravura à maneira negra. O processo consiste em abrir sulcos em uma chapa de cobre usando uma ferramenta chamada berceaux para conseguir na impressão da matriz uma textura homogênea e preta e, em seguida, onde se quer o branco, polir a chapa com um brunidor. Por se tratar de um processo lento, após inúmeras conversas com outros artistas gráficos, percebi que chegaria a um resultado semelhante ao da gravura à maneira negra por meio da monotipia – método de impressão com tiragem única, que não necessita a gravação na chapa de fato, apenas a remoção da tinta preta aplicada na superfície, com o uso de hastes flexíveis com pontas de algodão, tecidos, palitos etc. Experimentando essa técnica, comecei a recriar alguns frames do filme O Gabinete do Dr. Caligari. A influência desta obra já estava presente em meu trabalho (em ilustrações, gravuras e pinturas) desde 2003, quando trabalhei como maquiador e aderecista do grupo de teatro Canhoto Laboratório de Artes da Representação (que tinha como principal referência a estética do teatro expressionista alemão).”
O resultado, além de impressionante, imprime um traço inconfundível ao trabalho final. As imagens remetem não apenas ao filme, mas ao próprio movimento artístico do expressionismo, mantendo o clima onírico e de estranheza tão marcantes deste período. No entanto, isto não significa que Teles tenha buscado a mera reprodução frame a frame do filme. Ao contrário, o artista privilegiou sua própria memória, traduzindo para o papel a sua experiência pessoal com o filme.
Teles afirma que adaptou “O Gabinete do Dr. Caligari a partir da memória de como as cenas me marcaram e da observação de detalhes (como a atuação de atores coadjuvantes que se repete em vários momentos). Tentei priorizar o meu olhar sobre o filme ao usar a monotipia, optando por não apagar possíveis ‘erros’ e não refazer quadros por falta de semelhança com os originais do filme. Isso possibilitou que eu me expressasse com maior liberdade.”
Outra mudança significativa diz respeito ao início e final da obra. Teles se baseou no roteiro original de Hans Janowitz & Carl Mayer, sem os acréscimos feito pelo diretor na versão final. Na cena final do filme, é revelado ao público que todos os crimes são delírios de um interno do hospital psiquiátrico, mas não foi assim que foi inicialmente pensado pelos roteiristas. A opção de Robert Wiene acaba amenizando a crítica da obra ao militarismo e à obediência cega à autoridade, fatos que levaram a Europa à Primeira Guerra Mundial, da qual a Alemanha saiu derrotada e arrasada.
Na adaptação em quadrinhos, o autor busca resgatar esse viés menos conformista. Segundo Teles, “quando comecei o trabalho estava seguindo a versão do diretor – inclusive usando como referência a versão não-remasterizada – com a qual eu já havia construído uma relação mais ‘íntima’, com seus ‘defeitos’ e precariedade das imagens. Ao me debruçar em estudos teóricos sobre o filme, percebi alguns simbolismos que as personagens carregam – como o Dr. Caligari representando a autoridade e o sonâmbulo Cesare, o homem comum, que no exército é treinado para matar e ser morto de acordo com os interesses políticos e econômicos do Estado – e o fato de o roteiro original ter sido drasticamente alterado. Na versão do diretor, os horrores cometidos por Caligari e o sonâmbulo, são fruto da mente perturbada do narrador. Já no roteiro original, a história é contada pelo narrador como um relato verídico. Ao pensar na oportunidade de recontar a história, optei por deixá-la mais próxima da versão dos roteiristas, resgatando o discurso crítico que norteia a obra.”
É importante lembrar que o filme foi exibido no período entre guerras. A Alemanha vivia no que se convencionou chamar “República de Weimar” (embora não seja uma designação oficial, assim é conhecida a República da Alemanha entre 1919 e 1933), com uma Constituição extremamente progressista e inovador para a época, que trazia em seu texto muitos direitos sociais. Contudo, o texto constitucional não encontrou eco na realidade do país, que atravessava um período de grave crise econômica e conflitos políticos que acabaram resultando na ascensão do Nazismo.
Desta forma, o Expressionismo Alemão no cinema reflete os tempos conflituosos que o país atravessava. O horror na tela e a fotografia sombria refletiam os aspectos mais sinistros da própria sociedade germânica, onde a semente do fascismo começava a germinar. Embora o movimento artístico tenha se iniciado antes da ascensão de Hitler, todos os elementos já estavam borbulhando no caldeirão, como o desenho de uma estrutura social mecanizada e industrializada, cuja burocracia avançava sobre a população e permitiram a frieza com que foi executado o Holocausto.
O Expressionismo em si, contudo, é anterior até mesmo à guerra. Conforme elucida o autor, “O Expressionismo Alemão propriamente dito surgiu no início do século XX – com os grupos A Ponte e o Cavaleiro Azul, em 1905 e 1911, respectivamente – no campo da pintura, seguido pela literatura e pelo teatro. Estas primeiras expressões priorizavam a libertação do homem frente à industrialização e à mecanização da sociedade, assim como a aproximação entre a arte e o cotidiano. Após a Primeira Guerra Mundial e com a derrota da Alemanha, o movimento expressionista já não era mais o mesmo. A experiência do conflito proporcionou um engajamento político direto da nova geração dos artistas expressionistas. A chegada da República significou uma nova fase para a produção artística alemã, pois aboliu o controle e a censura, impulsionando o surgimento de uma forte arte de vanguarda. A linguagem do teatro expressionista foi de fato o ponto de partida para o cinema expressionista, por meio da geometrização e deformação dos cenários. O Gabinete do Dr. Caligari (1920), foi produzido com baixo custo e utilizou a linguagem expressionista como chamariz, representando a vontade alemã de se destacar no mercado cinematográfico, então dominado por norte-americanos e franceses. Por volta de 1925, pode-se falar do esgotamento da linguagem expressionista e o surgimento de uma tendência mais realista conhecida como Nova Objetividade, que passaria a predominar na Alemanha até a ascensão do nazismo em 1933.”
Se para Janowitz & Mayer foi difícil ver seu roteiro alterado, Alexandre Teles também teve seus percalços até ver sua HQ publicada. Além do processo em si para fazer seus quadrinhos, ainda teve que enfrentar uma longa espera até finalmente conseguir ser publicado.
“Demorei cerca de três anos para fazer Caligari!, intercalando com trabalhos temporários. Até ser publicado, foram mais quatro anos. Apesar de o mercado de HQ´s possuir um público vasto que consome principalmente histórias infantis, de super-heróis ou mangás, o espaço para produções autorais ainda é pequeno. E quanto ao mercado editorial, houve uma significativa diminuição nos incentivos e programas de leitura que eram fomentados pelo Estado, o que torna mais difícil a produção e o apoio de projetos desta dimensão. Eu não sei qual será a tendência, mas acho que realizar um trabalho longo como esse é um importante laboratório de estudos e uma maneira do artista continuar produzindo independente das condições de demanda de trabalho.”
Vivemos em um país onde a cultura não é valorizada como deveria. Nossas políticas culturais sempre são de ocasião, muitas parecendo mais preocupadas em atender a interesses particulares do que em fomentar a arte nacional. Ser artista, principalmente de obra tão autoral, exige abnegação e muita força de vontade. No entanto, a persistência do autor acabou dando frutos, eis que encontrou uma editora disposta a apostar em seu trabalho. É muito importante que iniciativas como a da Editora Veneta persistam, uma vez que, em tempos de polarização política crescente, cabe à arte o papel de refletir sobre os rumos que nossa sociedade está tomando.
“Acredito que não só a arte, mas também a cultura em geral e a educação sirvam para sugerir questionamentos e reflexões acerca das condições políticas e existenciais das sociedades. Hoje, estamos vivendo um período no qual os governos das principais potências mundiais, inclusive do Brasil, não estão priorizando o acesso à cultura e à educação, inclusive reduzindo o fomento às pesquisas e às produções nestas áreas”, afirma Teles. Darcy Ribeiro já dizia que a crise na educação no Brasil não é crise, mas um projeto. A frase continua sendo verdadeira, e diante da crise que atravessamos, a arte mais do que nunca se faz necessária. Projetos como Caligari! são mais do que nunca necessários, para que possamos vencer nossa própria sombra de autoritarismo e repressão, criando o senso crítico necessário para que identifiquemos e resolvamos nossos problemas.
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