Já através do cartaz, onde uma mulher abre seu peito para demonstrar a origem de sua força, pode-se compreender que a mulher e a força do feminino contra um decante patriarcado são os grandes temas do novo Suspiria (2018), dirigido por Luca Guadagnino e com roteiro de David Kajganich. O filme divide opiniões especialmente por apresentar uma versão diferente das bruxas pouco usual e que valoriza o feminino como um elemento de resistência às forças autoritárias.
O grande público, acostumado a compreender as bruxas como as vilãs da história, talvez tenha dificuldade em compreender que as bruxas de Guadagnino não apenas são as heroínas como também podem ser fonte de uma forte resistência a regimes autoritários. Quando uma notícia da TV alemã, nos anos 1970, mostra um representante do Governo Federal alemão anunciando que o Grupo Baader-Meinhof foi destruído e seu período terminou oficialmente, vemos posteriormente Suzzie Bannion, a personagem principal, falar sobre uma desordem; uma desordem que existiu no passado, uma desordem que estava ao redor e que ainda retornaria. Em seguida, ela questiona: “Por que todos estamos prontos a acreditar que o pior acabou?”
A proposta dessa coluna é elaborar breves pensamentos a respeito desse filme e não ser um review.
No atual momento distópico em que vivemos, o apelo a violência é algo que talvez seja pensado como uma saída. Em um cenário político, a luta de classes realmente pode vir a ganhar contornos de guerra e/ou guerrilha. Talvez a pressão de um sistema patriarcal nos coloque em um cenário em que essa pareça ser a única saída. Porém, também temos alternativas, como a desobediência civil e a arte.
Reiner Werner Fassbinder era um cineasta alemão contemporâneo aos integrantes do Grupo Baader-Meinhof. O grupo escolheria métodos mais violentos para lidar com os sentimentos tóxicos que perturbavam as relações entre pais e filhos. Tanto Andreas Baader quanto Ulrike Meinhof eram conhecidos por Fassbinder, já que seu mundo ocasionalmente se sobrepunha ao de sua gangue “anti-teatro” nos anos 1960. Em consonância com os traumas da Alemanha do pós-guerra, Fassbinder dedicou-se a um modo mais subversivo de terrorismo cultural do que eles.
Curioso se pensarmos numa certa relação entre arte e terrorismo. Especialmente a chamada arte experimental. Ela, de alguma forma mexe com os sentidos de forma a gerar uma enorme inquietação por parte da audiência. A arte de Fassbinder, que pode ser mais conhecida em seu livro de ensaios e entrevistas, A Anarquia da Fantasia, em um determinado momento se debruçou sobre a questão do terrorismo alemão presente nos anos 1970, cenário do filme Suspiria, resultando em dois filmes, Alemanha no Outono (1978) e A Terceira Geração (1979). O primeiro filme é uma antologia, com a visão também de outros cineastas, como Alexander Kluge, Volker Schloendorff e Edgar Reitz; o filme abre e fecha com a seguinte citação: “Chegando a um determinado ponto da crueldade, pouco importa quem o cometeu: ela simplesmente tem que parar”.
No filme Suspiria, de Luca Guadagnino, remake do Suspiria de 1977, de Dario Argento, a jovem bailarina norte-americana Susie Bannion começa seus estudos na renomada Markos Tanz Company, em Berlim. A cidade está em meio ao caos justamente pelas ações do Grupo Baader-Meinhof; enquanto isso, uma das dançarinas desaparece misteriosamente. A jovem Bannion se destaca ao longo dos testes e ensaios com a orientação de Madame Blanc.
Suspiria é um longa-metragem que apresenta bruxas que não são vilanizadas e em seus corpos femininos repousam várias dinâmicas de encantamento/feitiçaria/revolução que são despertadas pela Markos Tanz Company. A Markos Tanz Company é o contraponto perfeito de resistência ao modelo de resistência do Grupo Baader-Meinhof. A rigor, a própria violência de resistência acaba por servir a um sistema patriarcal, uma violência que faz o jogo do Estado, que, com a ação de grupos subversivos mais violentos, tem mais liberdade justamente para aumentar e disseminar a opressão, o controle e a violência do Estado.
Talvez o grande desejo de um Estado de extrema-direita seja exatamente disseminar o sentimento de que estamos em um mundo distópico. Que, a rigor, é um mundo criado sob suas próprias regras, sob a pena de um regime totalitário. Resistir com violência talvez possa vir a servir a esses interesses do Estado. Madame Blanc opta pela Magia como alternativa ao totalitarismo, ou seja, pela arte, pela desobediência civil e pela não violência. É o modelo feminino de resistir. Madame Blanc define que o movimento na dança é uma forma de escrita, com o qual se compõem poemas, preces e encantamentos. Ou seja, Luca Guadagnino compreende que Magia é Linguagem. E a Linguagem pode ser um elemento de resistência e subversão.
Não sei dizer se a violência não pode ser um recurso válido contra a opressão do Estado. Talvez em alguns casos, seja. Afinal, como afirmava Alan Moore em V de Vingança, “A anarquia ostenta duas faces. A de Destruidores e a de Criadores. Os Destruidores derrubam impérios, e com os destroços os Criadores erguem Mundos Melhores.” Porém, disseminar a violência é um recurso tipicamente masculino. Nesse sentido, antes de se escolher essa via, é necessário compreender se esse é um recurso válido ou se está apenas fazendo o jogo do Estado patriarcal.
Suspiria, de Luca Guadagnino, é um filme que foi produzido pela Amazon Studios e teve uma discreta passagem nos cinemas e nos festivais internacionais. No Brasil, está programado para estrear nacionalmente no dia 11 de Abril de 2019. É um filme que deve ser visto como um cinema de autor, de um diretor europeu, com alguns elementos de terror, mas sem qualquer tipo de jump scare, sem qualquer tipo de recursos fáceis para atrair a bilheteria e que dialoga completamente com os dias atuais em que Estados e governantes disseminam a cultura de ódio ao próximo, a necropolítica e a violência.
Suspiria oferece a sua contribuição para essa discussão tendo como ponto central a valorização da mulher e do sagrado feminino. Só por isso, é corajoso e pertinente em suas intenções e realização.
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