Velas ao Vento: lembrando a morte de Lady Di

Lady Di

Diana Frances Spencer, Princesa de Gales, morreu há 22 anos, em 31 de agosto de 1997. Apesar de pertencer ao que a Wikipedia descreve como uma das famílias “mais proeminentes da nobreza britânica”, foi vendida pela imprensa na época como uma mulher do povo, com o único propósito de alimentar o conto de fadas do príncipe que vira as costas à aristocracia para encontrar o verdadeiro amor nos braços de uma plebeia. Em sua vida, e principalmente na morte, podemos enxergar, como que sob uma lente de aumento, a gênese deste nosso mundo contemporâneo de celebridades e influencers, fãs e haters, factoides e fake news. E é como marco dessa metamorfose, quando a realidade deixou de ser apenas construída pela mídia, para passar a ser também construída para a mídia, num circuito autofágico que não cessa de deglutir a si mesmo, perpetuamente, que a história de Lady Di merece ser revisitada, não como efeméride ou lembrança, mas quase como fábula. De te fabula narratur, já diziam os autores latinos. É de ti que fala a fábula.

O modo estranho pelo qual os fatos assumem dimensão alegórica: Diana morreu como viveu, fugindo do assédio da imprensa. Morreu quando seu veículo perdeu o controle. Morreu no Hospital Salpêtriere, onde Charcot inaugurou a relação do mundo contemporâneo com a histeria. Existe outra definição possível para um acidente causado pela pressa em escapar dos fotógrafos? Histeria dos papparazzi, certamente, mas também da própria Diana, do motorista do carro, talvez do namorado e do guarda-costas. Histeria igualmente no que ela tem de ambíguo, no que ela encerra de sedução, no objeto que finge se furtar ao perseguidor apenas para melhor atraí-lo.

Porque, por louvável – e relevante hoje – que seja a discussão ética sobre os limites da imprensa, suscitada na época pelo caso Diana, por mais que as reportagens dessa mesma imprensa sobre os funerais da princesa insistam em sua pureza imaculada, é preciso não esquecer a notável habilidade que Lady Di sempre mostrou ao tratar com a mídia, seu raro senso de oportunidade, enfim, repitamos, seu poder de sedução. Não, Diana não foi uma vítima da manipulação da imprensa, sempre ávida por notícias. Pelo menos, não foi uma vítima inocente. Se sua imagem foi manipulada, fotos forjadas, boatos constantemente postos em circulação e tudo o mais que se atribui aos tabloides, a verdade é que também ela soube manipular muito bem a opinião pública. Basta lembrar a jogada de mestre que foi sua entrevista à BBC em 1995, quando, rasgando o próprio peito diante das câmeras, confessou suas infidelidades, sua frustração no casamento, sua bulimia. Como a deusa que lhe empresta o nome, se Diana foi caçada, era igualmente a caçadora. Os cães farejadores que simulavam persegui-la eram, de fato, a matilha fiel que batia o terreno à frente dela.

Foi por meio de um espetáculo midiático, seu casamento real, que Diana entrou para o mundo das celebridades públicas. Na verdade, e isso não é um simples detalhe, mas a chave para a compreensão de sua persona pública, o Royal Wedding é uma espécie de marco na evolução da sociedade do espetáculo – o primeiro evento concebido especialmente para ser visto pela mídia. Como Umberto Eco observou na ocasião: “Estava absolutamente claro que tudo aquilo que acontecia do Buckingham Palace até a Catedral de Saint Paul fora ensaiado para a televisão. O cerimonial excluía as cores inaceitáveis, os costureiros e as revistas de moda haviam sugerido cenas em torno das cores pastel, de maneira que tudo respirasse, cromaticamente, não apenas um ar de primavera, mas um ar de primavera televisiva.” Até mesmo o vestido de noiva, nota o teórico italiano, “não fora concebido para ser visto de frente, de lado, nem sequer de trás. Ele fora feito para ser visto de cima, como se viu num dos enquadramentos finais, onde o espaço arquitetônico da catedral estava reduzido a um círculo, dominado no centro pela estrutura em cruz do transepto e da nave, sublinhada esta pela longa cauda do vestido, enquanto os quatro quartos que serviam de coroa a esse emblema eram realizados, como num mosaico barbárico, pelo pontilhado colorido das roupas dos coristas, dos prelados e do público masculino e feminino.”

Em seu afã de garantir um espetáculo visualmente impressionante, os organizadores do casamento chegaram a extremos que só se pode qualificar de ridículos: “Leu-se, em seguida (mas nem precisava de muito esforço para imaginá-lo), que os cavalos da realeza tinham sido tratados durante uma semana inteira com pílulas especiais, de tal modo que seu esterco ficasse com uma cor telegênica. Nada podia ser confiado ao acaso, tudo era dominado pela transmissão da tevê.” Em seus comentários sobre o casamento de Diana, feitos em 1983, Umberto Eco é taxativo: “Se Mallarmé disse um dia: «Le monde est fait pour aboutir à un livre»,[1] as tomadas do Royal Wedding diziam que o Império Britânico fora feito para dar vida a uma admirável transmissão de tevê.”

Da mesma forma, os funerais da princesa adquiriram as dimensões de um verdadeiro show multimídia, com direito à performance de cantores, happenings profissionais e amadores, uma lavagem de roupa suja em público que não ficaria deslocada num Casos de Família qualquer, tudo isso atentamente acompanhado por espectadores do mundo inteiro, grudados nos monitores de TV ou em telões espalhados em Moscou, Tóquio, África do Sul. Um dos momentos mais emocionantes do evento, aliás, foi a comovente interpretação por Elton John de Candle in the Wind (“Vela ao Vento”), uma música originalmente escrita para, ora vejam só, Marylin Monroe, uma atriz que, a exemplo de Lady Di, alcançou seu destino e sua transfiguração em ícone pop na exata confluência da indústria cultural com as maquinações do poder.

[1] “O mundo foi feito para acabar num livro.”