Um bom amigo me disse recentemente que o problema dos últimos roteiros de Quentin Tarantino decorre de como seu Ego determina o desenvolvimento dos seus trabalhos. Bem, é indiscutível que Tarantino tem uma personalidade forte e que seu Ego norteia a maioria de seus trabalhos, seja em menor, seja em maior escala. A partir de Kill Bill: Volume 1 (2003) somos sempre lembrados de que estamos a ver o 4º ou o 5º filme da marca Tarantino. É como se um gênio anunciasse a si mesmo. Porém, tenho a tendência a pensar que muito de uma guinada que Tarantino apresentou nos seus últimos trabalhos, talvez a partir de Bastardos Inglórios (2009), decorre justamente do fato de que Quentin Tarantino está cansado de sustentar o seu Ego, de sustentar a sua persona. Sua aposentadoria após o décimo ou décimo primeiro filme dão indicativos disso.
Estas particularidades pessoais do diretor, apesar de interessantíssimas e pertinentes, foram deixadas de lado quando escrevi minha dissertação, defendida em 2019, sobre os protagonistas negros na obra de Quentin Tarantino. Isso porque, para uma boa compreensão das obras, a vida particular do autor não é levada em conta numa análise acadêmica. Mas este texto é um ensaio livre para um site de cultura pop com objetivo de fazer uma introdução ao universo de Quentin Tarantino, com ênfase em detalhes específicos que norteiam a sua obra e que, pela divulgação e pelo trailer, podem estar presentes em seu novo filme, Era Uma Vez… em Hollywood (2019), o nono em sua carreira. Resolvi dividir o texto em duas partes: Parte 1, com enfoque no diretor, escrito antes de ver seu novo filme; e a Parte 2, o review propriamente dito, após assistir ao filme.
Mas por que Bastardos Inglórios talvez seja um ponto em que a carreira de Quentin Tarantino apresente uma certa guinada?
Primeiro, porque é a partir dele que o período histórico, o ano em que seus personagens vivem, é fator determinante para o desenrolar da trama. Em Bastardos Inglórios, a Segunda Grande Guerra é um cenário essencial; em Django Livre (2012), o cenário é o período anterior à Guerra de Secessão (1865-1869), a guerra civil americana, com a divisão dos norte-americanos entre sulistas e nortistas, entre favoráveis à manutenção da escravidão como força de trabalho essencial ao progresso norte-americano contra os favoráveis a uma substituição do trabalho escravo pela industrialização; Os Oito Odiados (2015), se passa logo após o fim da Guerra de Secessão; Era Uma Vez… em Hollywood se passa em 1969, um ano histórico para os Estados Unidos, com a subida de Richard Nixon ao poder, os primeiros passos de Neil Armstrong na Lua, o primeiro Festival de Woodstock, o surgimento do filme Sem Destino (1969), de Dennis Hopper, e, é claro, infelizmente, o assassinato de Sharon Tate pelos fanáticos da Família Manson, considerado um dos crimes mais bárbaros da história do país. Não por acaso, em entrevistas, Quentin Tarantino chegou a dizer que seu novo filme é sobre 1969 e não sobre a família Manson e seus crimes.
Segundo, porque Bastardos Inglórios é o último filme de umas das mais importantes colaboradas de Quentin Tarantino: Sally Menke. Menke foi a editora de todos os filmes de Quentin Tarantino até sua morte prematura em 2010, decorrente de um possível mal-estar durante uma trilha de caminhada. Ela foi indicada ao Oscar por seu trabalho de edição em Pulp Fiction (1994) e seu último trabalho, Bastardos Inglórios (2009). Mas Menke foi igualmente editora de Cães de Aluguel (1992), Jackie Brown (1997), Kill Bill: Volume 1 (2003), Kill Bill: Volume 2 (2004) e À Prova de Morte (2007), comprovando-se como parceira essencial para a construção de uma assinatura cinematográfica do diretor Tarantino.
Embora haja a hipótese de uma guinada no cinema de Quentin Tarantino em 2009, há alguns temas nos quais o diretor não consegue abandonar em nenhum momento e estão sempre presentes em seus filmes. Um deles é o Western. Vamos deixar esse tema para a Parte 2, o review propriamente dito, porque o personagem de Leonardo DiCaprio é um ator de filmes western, algumas referências certamente serão percebidas. Vamos nos debruçar nesta Parte 1 sobre as questões raciais e as personagens femininas fortes. Pelo que se observa antes de ver o filme Era Uma Vez… em Hollywood, tudo indica, por sua divulgação e trailers, que esses temas estarão presentes também em seu nono filme.
Mas como a questão racial pode ser importante num filme protagonizado por Leonardo DicCaprio e Brad Pitt, dois homens brancos, e que não apresenta nenhum ator negro em sua divulgação? Algumas pistas podem dar indicativos de como, sempre nos lembrando que o interesse de Tarantino é transportar o público para o período histórico de 1969, para o que ele foi de melhor ou o que ele foi de pior.
A maior de todas as pistas reside exatamente nos crimes cometidos pela Família Manson, um fato histórico real conhecido por todo americano e que culminou na morte da atriz Sharon Tate. Charles Manson mandou seus seguidores Charles “Tex” Watson, Susan Atkins, Patrícia Krenwinkel e Linda Kasabian para uma casa na Cielo Drive em Benedict Canyon. Todos, exceto Krenwinkel, empunhavam uma faca. Watson tinha uma arma. O objetivo de Charles Manson? Causar um banho de sangue, construir uma cena de crime para que a polícia pensasse que o crime havia sido cometido por pessoas negras e, a partir daí, causar uma comoção nacional, uma nova guerra civil norte-americana, agora mais pontualmente entre brancos e negros, com o intuito de, após esse conflito racial, Manson ascender como o novo líder da América.
Sim, parece algo completamente absurdo, mas o promotor Vincent T. Bugliosi, que, à época, contribuiu para a condenação de Manson e seus seguidores, considera que as mortes foram o resultado de uma tese apocalíptica de Manson, que dizia acreditar que brancos e negros travariam uma disputa sem precedentes nos Estados Unidos. Em suas pregações, ele dizia que o White Album (Álbum Branco), dos Beatles, – e em especial a música Helter Skelter – seria uma espécie de quebra-cabeças com revelações codificadas sobre a iminência do confronto racial pelo poder nos EUA. O objetivo de Manson era “acelerar” esta guerra racial, por meio de assassinatos falsamente associados a afro-americanos. Manson prometia proteção aos seguidores e dizia que se tornaria um messias ao fim da guerra. Para o promotor Bugliosi, o objetivo de Charles Manson e seus seguidores era “Dar início ao ‘Helter Skelter’, iniciar um conflito racial entre negros e brancos, fazendo parecer que os negros haviam assassinado Sharon Tate e as demais vítimas. A comunidade branca se voltaria contra o homem negro e finalmente haveria uma guerra civil entre negros e brancos”. Como resultado desse conflito, Manson se tornaria o novo líder político e messiânico da América.
Não menos importante é a presença de Bruce Lee no filme. A questão racial nos filmes de Quentin Tarantino tem um olhar sensível à comunidade negra norte-americana, mas não dispensa pensar em outras raças e em outras fronteiras. Nesse sentido, a presença de Bruce Lee, então amigo pessoal do diretor Roman Polanski e sua esposa Sharon Tate, é importante. Lee e Polanski eram tão amigos que Lee passou um tempo em um chalé de Polanski na Europa durante um certo tempo; momento em que, durante uma ida às compras, adquiriu a icônica roupa de ginástica amarela usada em Jogos da Morte (1978) e que Tarantino viria a citar nos filmes protagonizados por Uma Thurman como A Noiva: Kill Bill: Volume 1 e Kill Bill: Volume 2.
Bruce Lee foi criador não creditado da série Kung Fu (1972-1975). Lee apresentou uma série para a Warner Brothers em que um protagonista chinês, discípulo de um Templo Shaolin, viveria aventuras no Western americano. Lee seria o protagonista. A Warner Brother recusou, afirmando que uma série protagonizada por um chinês não seria sucesso. Em seguida, a Warner Brothers fez a série sem nenhuma referência, sem nenhum crédito e sem nenhum pagamento a Lee. Contratou o ator David Carradine, que futuramente interpretaria o personagem Bill no futuro filme de Tarantino, um ator branco, para viver um mestiço oriundo do Templo Shaolin. A série se tornaria um sucesso por décadas e ainda dialogaria com os negros norte-americanos que, na ausência considerável de protagonistas negros nas séries norte-americanas, se identificariam com o personagem principal, um contraponto aos protagonistas brancos.
O resultado disso é o fato da cultura oriental do Kung Fu ser constitutiva do Rap norte-americano, seja na formação de nomes como o grupo Wu Tang Clan e seus diversos integrantes, sua sonoridade repleta de diálogos de filmes de Kung Fu, seus samples de sons de luta, esquivas, espadas e diversos outros elementos desse gênero fílmico. Todo rapper tem consciência dessa influência oriental na cultura Rap e podemos evidenciar isso até mesmo em rappers brasileiros como Emicida, como a alusão a esse diálogo do Rap com o Kung Fu presente no videoclipe Zica, Vai Lá (2012).
Bruce Lee é um personagem caro a Tarantino, que afirmou que, se estivesse vivo, o mestre do Kung Fu viveria Pai Mei em Kill Bill: Volume 2. Quanto à representação racial de Bruce Lee no filme Era Uma Vez… em Hollywood, não me surpreenderia se Quentin Tarantino optasse por fazer com que Bruce Lee fosse representado a parecer alguém arrogante e, até mesmo, um lutador inferior. Porque para Tarantino, o essencial possa vir a ser não apenas reproduzir um filme de 1969, mas, sim, transportar o expectador para o ano de 1969. Em tempos de valorização de obras audiovisuais que possuam uma estética cultural que remeta à nostalgia de décadas anteriores, décadas em que as conquistas raciais e identitárias não imperavam, tal possível recurso de Tarantino pode ser um golpe mais poderoso e um desvelamento mais duro contra o que foi 1969 para os negros, os orientais e as mulheres.
E entramos em outro tema caro e controverso em seus trabalhos: o universo feminino. Há um conjunto de textos acadêmicos que se debruçam bastante sobre a construção de personagens femininos em seus filmes. Para a Parte 2, o review do filme propriamente dito, em que o universo dos produtores e atores hollywoodianos terá destaque, assim como a violência contra a mulher, o fator Harvey Weinstein provavelmente será levantado.
Mas, aproveitando este ensaio livre, considero interessante para a compreensão da obra de Tarantino destacar um elemento de sua vida pessoal.
Quentin Tarantino nasceu em Knoxville, Tennessee em 27 de março de 1963. Sua mãe, Connie McHugh-Zastoupil, uma mulher descendente de irlandeses e índios Cherokees, tinha 16 anos quando engravidou dele. Seu pai, Tony Tarantino, cantor fracassado descendente de italianos, abandonou a mulher à própria sorte antes mesmo do filho nascer. Quando Tarantino completou quatro anos, ele e sua mãe se mudaram para Califórnia, onde ela conheceu Curt Zastoupil, que se tornou padrasto (stepfather) de Tarantino. Curt e Connie tiveram mais filhos e deram uma família a Quentin Tarantino.
Tony Tarantino, seu pai, nunca entrou em contato com o filho. Uma tentativa de reaproximação com o diretor por parte de seu pai só surgiu quando o filho começou a se destacar em sua carreira cinematográfica; Tarantino rechaçou e se recusou a ter qualquer tipo de contato com o pai. O que até faz surpreender a escalação de Al Pacino no elenco de Era Uma Vez… em Hollywood, isso porque, nas tentativas de surfar na trajetória de sucesso do filho, Tony Tarantino desenvolveu uma grande amizade com Al Pacino.
Considero que reside em sua jornada pessoal a necessidade de Quentin Tarantino em retratar mulheres fortes como Jackie Brown ou Beatrix Kiddo. Falar de Sharon Tate, uma mulher grávida quando foi assassinada, não poderia ser mais forte, simbólico e significativo nesse sentido.
Com esses elementos dispostos, já podemos partir para assistir a Era Uma Vez… em Hollywood ao menos tendo em mente possíveis intenções do diretor. Se serão confirmadas ou não, só o próprio filme dirá.
Era uma Vez... no Cinema
Reticências: 1. Omissão voluntária do que se podia dizer. 2. Atitude de hesitação ou reserva em relação a algo. 3. Conjunto de três pontos seguidos que constituem um sinal de pontuação que indica suspensão do discurso ou do pensamento.
Vamos para a segunda parte do texto sobre Era uma Vez… em Hollywood (2019), agora com um review propriamente dito. A primeira parte do texto era um ensaio livre, um preâmbulo a respeito de Quentin Tarantino e dos temas mais recorrentes em seus filmes. Ainda que muito do que se tenha discutido na primeira parte se mantenha, o diretor não deixa de surpreender. O que me leva a crer que, na verdade, um review que seja mais uma mesa redonda entre alguns autores é mais interessante do que um review de uma única pessoa. Assim, vou chamar alguns autores e mediar uma conversa entre eles nesse review. Em algum momento, farei intervenções, de forma a manter o texto em sua linha guia de cultura pop.
Roger Ebert, em seu livro A Magia do Cinema (2004), quando se refere ao cineasta Douglas Sirk, afirma que, para apreciar seus filmes, é necessário certa sofisticação, até maior do que a necessária, para compreender os filmes realizados por Ingmar Bergman. Douglas Sirk, em pleno anos 1950, realizava em seus filmes uma crítica à sociedade norte-americana e os transformava em sucessos de bilheteria para a Universal Pictures. Tal resultado se dava porque, para Ebert, Sirk era um mestre em camuflar a mensagem através do seu estilo. Da mesma forma, assim opera Quentin Tarantino em Era uma Vez… em Hollywood, que entrega até o momento sua terceira melhor bilheteria em solo americano, atrás apenas de Django Livre (2012) e Bastardos Inglórios (2009).
O filme se passa em 1969, centrando sua atenção, em termos aparentes, no astro de TV Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu dublê Cliff Bott (Brad Pitt). Rick Dalton tenta acompanhar as mudanças em sua carreira em Hollywood, especialmente decorrentes pelo crescimento da TV em lares norte-americanos, que o obrigam a realizar participações especiais como o vilão em séries de Westerns. Bott é seu braço-direito, dublê, motorista e faz-tudo. Praticamente uma babá de Dalton, com DiCaprio entregando uma bela atuação que satiriza os homens infantilizados que se recusam a crescer e enxergar uma mulher como uma igual. Tanto o é que a única pessoa do sexo feminino com quem Dalton trava um diálogo mínimo, de igual para igual, demonstrando compreensão mútua, é com uma jovem colega de set, Trudi, de 10 anos.
Mas, se Rick Dalton é uma crítica suave, Cliff Bott é uma crítica ácida ao macho adulto branco, um personagem frio, perverso, racista, misógino e que se mantém livre da lei, apesar da suspeição sobre um crime. Não gostaria de entrar em detalhes, mas é importante, para compreender melhor a mensagem desse nono filme de Quentin Tarantino, prestar atenção às rimas visuais. Em especial as rimas existentes entre as cenas de lutas. Elas dizem muito sobre as motivações dos personagens, sobre como enxergam o outro, sobre quem são na realidade. E uma importante cena de luta, de um filme dentro de outro filme, está presente naquele que é o momento síntese do filme. Um momento que demonstra como Hollywood se perpetuou por anos e anos através do rebaixamento das figuras femininas e de outras etnias que não sejam as brancas.
A cena se dá quando Sharon Tate (Margot Robbie) vai assistir ao seu filme mais recente, The Wrecking Crew (1968) nos cinemas. Você tem três ações acontecendo ao mesmo tempo: a ação metalinguística do filme dentro de outro filme, a reação da plateia ao filme e a ação de Tate, em meio a esse diálogo entre o público e o filme. A um certo envaidecimento de Tate diante das risadas e do aceitamento do que é visto em tela. Nesse filme assistido por Tate, em que ela mesma participa, vemos uma figura feminina valorizada por sua beleza, subalternizada, até mesmo ridicularizada diante do protagonista masculino principal. Vemos também cenas de uma luta entre uma mulher branca, a própria Tate, contra uma mulher oriental aparentemente vilanizada e estereotipada. Ironicamente, descobrimos em flashback, como se deu o preparo de Tate para a cena em questão. São elementos dispostos por Quentin Tarantino de forma a demonstrar como Holllywood é uma indústria com base nesses estereótipos e preconceitos raciais e de gênero. E como a plateia norte-americana se deleita e ri desses mesmos estereótipos.
Outro ponto interessante, adentrando na caracterização de Tate por Tarantino, é que The Wrecking Crew (1968) estreou nos cinemas mundiais em fevereiro de 1969. Sharon Tate foi assassinada em agosto de 1969, grávida de pouco mais de 8 meses. Ou seja, na cena em questão, com ela se vendo em tela, Sharon Tate estava grávida. O olhar de Tarantino não é de um diretor voyeur sobre Sharon Tate. A câmera opta por enxergá-la como uma mãe durante todo o filme. Reduzir a personagem a um apelo sexual seria um equívoco ao qual o diretor ousa não cair. O corpo da personagem Sharon Tate não é objeto de desejo. O que interessa a Tarantino é a maternidade em Sharon Tate. A maternidade vilipendiada pela indústria americana e por Charles Manson e seus seguidores. E a maternidade é um tema caro a Quentin Tarantino. Kill Bill: Volume 1 (2003) e Kill Bill: Volume 2 (2004) são filmes sobre uma mãe e sua luta por salvar sua filha das garras do ardiloso Bill, que se apresenta sádico logo na cena inicial do primeiro filme, deixando uma mãe grávida, abatida, à beira da morte. Além disso, um dos episódios da série de TV ER / Plantão Médico (1994-2009), dirigido por Quentin Tarantino, chama-se exatamente “Motherhood”.
Tarantino foi convidado para dirigir o episódio através de George Clooney quando ambos trabalharam juntos em Um Drink no Inferno (1996) como os irmãos Gecko. O episódio tem o roteiro escrito por outra pessoa, Lydia Woodward, porém, em sua direção, ele imprime suas características habituais relacionadas a estética da violência, ainda que para uma audiência em TV aberta, e, pela primeira vez, tem a oportunidade de trabalhar com a temática da maternidade, ainda que diluída por todo episódio, mas que viria a se repetir tanto em Kill Bill: Volume 1 e Kill Bill: Volume 2 quanto em Era uma Vez… em Hollywood.
Outro autor que chamo para a conversa é o próprio diretor. Quentin Tarantino mantém um cinema chamado New Beverly Cinema. Um cinema histórico da região de Los Angeles, que remonta aos anos 1920, mas adquirido por Tarantino nos anos 2000 para impedir que o funcionamento do cinema fosse descontinuado; desde então, ele é geralmente responsável por sua programação e, além do cinema, há um blog para divulgação do espaço e de textos a respeito de cinema. Alguns textos de Tarantino sobre cinema estão disponíveis para quem se interessar. Um dos mais interessantes dele, e que pode nos ajudar a compreender suas intenções em Era uma Vez… em Hollywood, diz respeito ao filme Ulzana’s Raid (1972). O link para esse texto estará nas referências.
Tarantino, nesse artigo, demonstra a importância de um olhar mais crítico sobre a velha guarda cinematográfica que ganhou o status de autor graças à revista francesa Cahiers du Cinema. O artigo aponta para um não endeusamento de diretores como John Ford e Alfred Hitchcock, pondo em cheque que certos grupos de diretores os sigam sem questionamentos, como feito pelo grupo de diretores conhecidos como Movie Brats (Coppola, Bogdanovich, Scorsese, Spielberg, Lucas, Milius e Schrader).
Tarantino, ao contrário, valoriza diretores antissistema, conhecidos como The Post Sixties Anti-Establishment Auteurs: Altman, Rafelson, Penn, Perry, Ashby, Schatzberg e Cassavetes. Para ele, esses diretores, ao verem uma obra de John Ford, “não viam um homem em conflito tentando encontrar seu lugar na sociedade em que tinha vivido sua juventude. Eles assistiam a um filme sobre um bastardo racista que odeia índios e que, por fim, é absolvido pela comunidade grata (isto é, a Sociedade Branca).” Para Tarantino, os filmes de John Ford não são apenas sobre o “modo de vida americano” ou sobre uma sociedade civilizada. Esses termos escamoteiam a valorização apenas de uma Sociedade Branca. Segundo ele, o público americano (branco) não apenas não se importava, como, na maior parte do tempo, concordava com esse preconceito racial.
Dessa forma, o filme Era uma Vez… em Hollywood, por ter consciência do racismo de protagonistas brancos e do racismo de boa parte do público de cinema, tenta subverter esse protagonismo branco e pode ser compreendido como uma crítica à indústria Hollywood como um todo. Não apenas uma crítica à Hollywood de 1969, mas entendendo 1969 como um ponto de efervescência de preconceito racial e misoginia que continuou nas décadas seguintes e se perpetua até os dias atuais. Reparem nas formas como os mexicanos e os asiáticos são citados e compreendidos pelos personagens brancos, em especial Rick Dalton ou Cliff Bott. Sempre à margem, sempre condicionados a um entendimento branco, sempre enxergados com desrespeito ou como subcultura pelos personagens de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt. A ausência de negros durante todo o filme rima diretamente com a ausência de negros na indústria durante esse período. Essa ausência de atores e personagens negros não é um endosso. É uma crítica.
O que pode ser importante para compreender a opção de Quentin Tarantino na forma como retrata Charles Manson e seus seguidores. O que posso apenas afirmar é que são personagens que, definitivamente, não entrarão na galeria de maiores personagens da filmografia de Tarantino. O que é ótimo. Porque o diretor se preocupa em não reificar esses personagens e nem suas atitudes. Nem mesmo suas motivações reais. Porque toda a motivação real da Família Manson encontra outra abordagem em Quentin Tarantino. Gosto de compreender esse filme como uma visão do diretor comprometida em respeitar os alvos diretos do crime: a figura feminina e a comunidade negra.
Melancólico, Anti-Tarantino e Político. Assim é Era uma Vez… em Hollywood. Melancólico porque se ao mesmo tempo que o diretor fala de Hollywood como celeiro de sonhos, também a reconhece como espaço de perpetuação de preconceitos raciais e de gênero. Anti-Tarantino porque, por mais que o diretor preserve sua estética habitual, ele a trabalha com mais cuidado, não deixando seus diálogos sobrepujarem a interpretação dos atores e nem a violência se apoderar de toda a história. Político porque o ano em que se passa o filme, 1969, rima diretamente com o momento de recrudescimento da extrema-direita mundialmente em 2019.
Propositadamente ou não, 1969 também é o ano de lançamento de Sem Destino (1969), filme dirigido por Dennis Hopper. Em Hollywood, há dois momentos em que a indústria cinematográfica enxerga o cinema independente como fonte de lucro ou de ideias: 1969, com o filme de Hopper, que alimenta os diretores-autores do Movie Brat. E, em um segundo momento, em 1994, com o grande sucesso de Pulp Fiction (1994), parceria de Quentin Tarantino com o produtor Harvey Weinstein. Para uma melhor compreensão desses dois momentos em que a indústria hollywoodiana, lanço um olhar sobre o cinema independente como fonte de lucro, e deixarei a dica, nas referências, de dois livros de Peter Biskind: Easy Riders, Raging Bulls How the Sex-Drugs-And-Rock-N-Roll Generation Saved Hollywood (1998) e Down and Dirty Pictures: Miramax, Sundance, and the Rise of Independent Film (2004). O primeiro focando na fase de 1969 em diante e o segundo já se debruçando na fase independente dos anos 1990.
Peter Biskind, embora tenha ganhado inimizade de Harvey Weistein por sua visão desmitificadora do produtor como um cinéfilo e por investigar suas artimanhas para legitimar sua empresa no mercado, em nenhum momento de seu livro cita o produtor como um perpetuador de assédio e abuso sexual contra atrizes. O cita como um produtor que usa do recurso da violência nas negociações como no trecho em que afirma que negociar com Weinstein “era como temer ser atropelado por um caminhão de dez toneladas que seguia avançando e poderia te passar por cima.”
A exceção desse seu novo filme, realizado em parceria com a Sony Pictures Entertainment, a parceria entre o diretor e o produtor ao longo de décadas, é uma parceria que se mostrou uma grande mancha para os filmes de Tarantino. Seus filmes estão com a logo ou da Miramax ou da Weinstein Company, ambas empresas de Harvey Weinstein. Tarantino se omitiu no caso Weinstein, afirmando: “Havia algo mais que os tradicionais boatos e as fofocas habituais. Não era (informação) de segunda mão. Sabia o suficiente para ter feito mais do que fiz.”
Segundo Biskind, Harvey Weinstein afirmava que Tarantino era o filho que nunca teve, especialmente por Pulp Fiction (1994) ter sido a pedra angular de seu então império cinematográfico.
Definitivamente, figuras paternas, figuras de macho adulto branco, são os grandes adversários de Quentin Tarantino.
Referências:
– EBERT, Roger. A magia do cinema: os 100 melhores filmes de todos os tempos analisados pelo único crítico ganhador do prêmio Pulitzer; tradução de Miguel Cohn. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
– TARANTINO, Quentin. Ulzana’s Raid. Disponível em https://thenewbev.com/blog/2019/03/ulzanas-raid/ – Acesso em 23/08/2019.
– BISKIND, Peter. Como a geração sexo drogas e rock’n’roll salvou Hollywood. Editora Intrinseca, 2009.
– BISKIND, Peter. Down and dirty pictures: Miramax, Sundance and the rise of independent film. Simon & Schusterm, 2004.
– PRESSE, France. https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/quentin-tarantino-admite-que-sabia-de-abusos-sexuais-de-harvey-weinstein.ghtml – Acesso em 23/08/2019.
– FERNANDEZ, Laura. https://cronicaglobal.elespanol.com/letra-global/cronicas/harvey-weinstein-peter-biskind_96437_102.html – Acesso em 23/08/2019.
Redes Sociais