O povo todo unido: Bacurau é nosso Fuenteovejuna

Bacurau

Há exatos quatrocentos anos, em 1619, o dramaturgo espanhol Lope de Vega publicava uma peça chamada Fuenteovejuna. Inspirada em fatos reais, a peça conta como, cansados do autoritarismo e das arbitrariedades do comendador que governava a cidade, os habitantes de Fuenteovejuna (hoje Fuente Obejuna, na Andaluzia) se juntam para assassiná-lo. Um destacamento militar, enviado pelo rei, ocupa a cidade para investigar o crime e descobrir os assassinos. Mas mesmo sob tortura, nenhum dos habitantes entrega quem cometeu o crime, e todos dão a mesma resposta:

– ¿Quién mató al Comendador?

– Fuenteovejuna, Señor.

– ¿Quién es Fuenteovejuna?

– Todo el pueblo, a una.

Bacurau é nosso Fuenteovejuna.

Talvez a obra mais importante que o cinema brasileiro produziu desde Cidade de Deus (2002), Bacurau tornou-se, ao longo deste ano que termina em meio a brumas, um filme quase obrigatório, suscitando polêmicas, alimentando debates e discussões, especialmente depois de ter sido nomeado para a Palma de Ouro em Cannes, arrebatando o Prêmio do Júri.

Para seus detratores de direita, é um filme panfletário, preconceituoso, que demoniza o estrangeiro, quer o americano, quer o brasileiro do Sul e do Sudeste, pregando o ódio e a retaliação. Para seus detratores de esquerda, (porque sim, os há), Bacurau é uma obra simplista e simplória, que oferece catarses em vez de soluções e, assim, mantém-se preso aos limites do espetáculo, cujo propósito, como definiu Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, é proporcionar soluções imaginárias para conflitos reais.

Para seus admiradores, mesmo que não tenha sido a intenção original (Bacurau começou a ser pensado dez anos atrás, e as filmagens, entre março e maio de 2018, embora contemporâneas do assassinato de Marielle, ocorreram antes das eleições, quando ninguém ainda acreditava em seu desfecho), o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tornou-se, pela obra em si e por seu sucesso aqui dentro e lá fora, a resposta mais perfeita do cinema nacional a este mundo bolsonaro.

A PARTIR DAQUI HÁ SPOILERS.

O filme, que se passa “alguns anos no futuro”, abre com a chegada de Teresa (Bárbara Colen, que largou uma carreira no Ministério Público para estrear no cinema em Aquarius, filme anterior de Kleber Mendonça Filho), de volta à fictícia cidade de Bacurau, no sertão pernambucano, para o enterro da avó, Carmelita (que empresta a imagem da cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá). Mais de cem anos de gramática narrativa no cinema nos ensinaram a esperar que Teresa vai ser a protagonista, como nas dezenas de filmes independentes americanos que começam todos com o personagem principal retornando à cidade onde nasceu, frequentemente para o enterro de um parente ou amigo.

Mas é um arenque vermelho.[1] Mal chega à cidade, Teresa (de carona com o caminhão-pipa que traz água à cidade, cuja represa, seca, serve de refúgio a guerrilheiros foragidos, mais sobre eles daqui a pouco) se torna apenas mais uma habitante entre os habitantes, perfeitamente integrada à comunidade, e com mais ou menos o mesmo tempo de tela e espaço no roteiro de todos os outros. Como em Fuenteovejuna, a verdadeira protagonista de Bacurau é Bacurau.

Desde as primeiras cenas na cidade, se impõe o que talvez seja o elemento central do filme, o senso de comunidade, compartilhado por todos os moradores e em contraste com o individualismo desumanizante trazido pelos invasores. Nesse sentido, os críticos de esquerda que detonaram o filme por não oferecer soluções não viram o que estava bem diante do nariz deles, conspícuo como um velho nudista brandindo uma escopeta. E não viram porque provavelmente não era a resposta que esperavam.

Em vez de desfilar os chavões panfletários de sempre (mostrando que os críticos de direita também não viram o filme que estava na tela e, em vez disso, se agarraram ao filme imaginário que roda ininterrupto dentro de suas cabecinhas conservadoras), a resposta que Bacurau oferece contra a violência e a desumanização dos tempos atuais, contra a exploração pelo poder político, personificado pelo prefeito corrupto, e pelo poder econômico, representado pelos vilões estrangeiros, é esse senso de comunidade, de união, não entre a “população”, essa entidade abstrata que só existe nas estatísticas do IBGE, mas entre as pessoas. Pessoas de carne e osso, com suas qualidades e defeitos, com seus conflitos, amizades e inimizades, mas capazes de colocar tudo isso de lado para defender a humanidade que o mundo ao redor quer lhes roubar. Quem é Bacurau? O povo todo unido.

A prova de que o foco pretendido é a união, e não a violência, está no fato de que, a despeito da comparação estereotipada com Tarantino, e de uma ou duas cenas um pouco mais gráficas, Bacurau é um filme bem menos violento do que se poderia esperar. A resistência é armada, mas porque os invasores estão armados, e se não morrerem, vão matar. A violência, porém, não faz parte do quotidiano de Bacurau que, para fazer frente aos gringos, precisa buscar armas velhas, obsoletas, no museu da cidade: a violência deveria ser uma relíquia do passado e, para desgosto dos stalinistas que torceram o nariz para o filme, o povo não pega em armas para derrubar a burguesia e instaurar a ditadura do proletariado, e sim para defender não apenas suas vidas, mas seu modo de vida, diametralmente oposto à distopia de uma arma na casa de cada cidadão de bem.

Normalmente, histórias com essa estrutura narrativa, que gira em torno da defesa de um way of life tradicional contra inimigos armados de tecnologia de ponta, tendem a ser conservadoras, e até um tanto quanto luditas: a modernidade é um mal, a tecnologia é ruim, bom mesmo era o passado, onde não havia nada disso e cada pessoa sabia exatamente qual era o seu lugar. Não é o caso em Bacurau, onde a vidinha tradicional de uma cidade pequena do interior convive harmoniosamente com tablets e celulares. Mas isso porque Bacurau está longe de ser uma cidade convencional.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles pensaram Bacurau deliberadamente como uma comunidade utópica. Longe do conservadorismo tacanho tradicionalmente atribuído às cidadezinhas do interior, Bacurau é um espaço libertário no sentido forte do termo que, antes de ter sido indevidamente sequestrado por neoliberais e por essa aberração contemporânea que é o “anarco”-capitalismo, designava o ideal anarquista de uma sociedade em que todos fossem livres para ser, fazer e viver como bem entendessem.

Em Bacurau, essa liberdade se estende inclusive ao sentido sexual. De novo contrariando o estereótipo do interiorano moralista e mexeriqueiro, alimentado especialmente pelas novelas ditas regionais, os bacurauenses são firmes defensores do “viva e deixe viver”. Mal chega na cidade, Teresa já convida outro personagem para dormir com ela. Domingas, a médica lésbica brilhantemente interpretada por Sônia Braga, tem uma relação aberta com a namorada. Outros três personagens formam um trisal. Lunga, o guerrilheiro, é um personagem assumidamente queer, vivido por um ator assumidamente queer, Silvero Pereira. Mas nada disso é sublinhado, como se o filme quisesse chamar a atenção para sua natureza progressista. Pelo contrário, os personagens e suas sexualidades são apresentados de modo quase casual, quotidiano, como se fosse uma coisa perfeitamente natural. Porque é uma coisa perfeitamente natural. Ou, pelo menos, deveria ser.

Enquanto isso, o resto do país encontra-se mergulhado numa distopia que não é difícil ver como um prolongamento direto do atual clima pré-totalitário, com direito até a ressuscitar os zumbis do Movimento Integralista, cujos uniformes, que lhes valeram o apelido jocoso de “Galinhas Verdes” na década de 1930, bem poderiam substituir o figurino de motoqueiro do casal de sulistas que colabora com os caçadores, apenas para acabar morto a tiros por eles, punidos pelo crime imperdoável de terem se julgado no mesmo nível dos estrangeiros: “A gente é do Sul, somos mais como vocês.”

Foi principalmente essa frase que rendeu ao filme a acusação de ser preconceituoso em relação aos não-nordestinos, acusação que soa suspeitosamente como o sofisma do “racismo às avessas”. Como disse Duanne Ribeiro na revista Cult: “Mais do que americanos ou sudestinos, o antagonista é quem não enxerga nos demais pessoas, mas recursos de manobra política, objetos exóticos, animais para o abate. O adversário, em Bacurau, é a reificação.”[2] Ribeiro continua: “Contra essa razão instrumental, o heroico está no irredutível da vivência – o que é aludido no diálogo entre a turista carioca e o menino da terra: «Quem nasce em Bacurau é o que?» – «É gente!».”

A maneira sucinta, sutil e, ao mesmo tempo, brutalmente eficaz que os roteiristas-diretores escolheram para mostrar o caráter distópico desse Brasil futuro é uma legenda que se vê de passagem, na TV, anunciando, como se fosse algo perfeitamente banal e corriqueiro: “São Paulo. Execuções públicas recomeçam às 14h no Vale do Anhangabaú.” Basta isso para sabermos que estamos num país onde não só a pena de morte voltou a se instaurar, como tornou a ser um espetáculo público, presume-se que com o duplo propósito de fornecer pão e circo aos cidadãos de bem, ao mesmo tempo em que serve de instrumento de intimidação para dissuadir os opositores do regime: ninguém precisa dizer explicitamente que é o destino que aguardaria Lunga e os demais guerrilheiros se fossem capturados.

Estilisticamente, a mise-en-scène de Mendonça e Dornelles é construída em cima de várias referências, citações e homenagens, a maioria ao cinema americano, em especial ao diretor John Carpenter, ídolo confesso dos diretores. A sequência inicial, por exemplo, em que a câmera se aproxima de Bacurau vindo do espaço exterior, remete à abertura de The Thing (Enigma do Outro Mundo), um dos principais filmes de Carpenter, que também contribui com a trilha de Bacurau e dá nome, abrasileirado, ao colégio da cidade.

Essas opções estilísticas incomodaram vários resenhistas que, à direita e à esquerda, apontaram uma contradição entre a intenção de criticar a presença estrangeira (mas, como vimos, a intenção talvez não seja exatamente essa, pelo menos não da maneira simplória pressuposta pelos críticos em questão) e a utilização de gêneros e recursos cinematográficos oriundos desse mesmo estrangeiro. Como se a contradição não fosse o motor da dialética, esse termo cujo sentido a esquerda atual parece não ter mais capacidade de compreender. E como se a cultura brasileira não fosse marcada pelo viés antropofágico de devorar, deglutir e digerir a influência estrangeira, que Oswald de Andrade identificou e formalizou na década de 1920, mas que é um traço nacional pelo menos desde que os tupinambás jantaram o infame Bispo Sardinha em 1556.

Para não dizer que só falei de flores, o destino dado a Michael, o líder dos estrangeiros, interpretado pelo ator alemão Udo Kier, e a Tony Jr., o prefeito corrupto (Thardelly Lima), embora faça sentido no contexto geral do filme, cria um subtexto involuntariamente problemático que, se você não viu o ALERTA DE SPOILER lá em cima, repito aqui, antes de entrar no mérito da questão.

Ao contrário dos demais estrangeiros, que são mortos pela resistência quando tentavam assassinar os moradores, Michael é capturado e trancafiado numa jaula de cimento, construída apenas para isso e enterrada no chão de Bacurau, onde ele passará o resto da vida em prisão perpétua. Já o prefeito, quando se descobre que estava mancomunado com os invasores, é amarrado pelado e vendado no lombo de um burro, e expulso da cidade, reeditando o velho ritual bíblico do Bode Expiatório.

A ideia, presume-se, é mostrar que o povo da cidade não aprova a pena de morte: uma coisa é matar em legítima defesa, outra bem diferente é assassinar uma pessoa, mesmo que um criminoso, a sangue-frio. Mas, simbolicamente, isso implica que o princípio que Michael e Tony Jr. representam – a corrupção político-econômica – não foi nem dissolvido, nem transformado, mas reprimido no inconsciente (o deserto para onde o prefeito foi expulso, a cela subterrânea de Michael), de onde pode tornar a irromper de maneiras ainda mais destrutivas.

Não que eu ache que eles deveriam ter sido executados, que fique bem claro. Não sei como esse subtexto involuntário poderia ser evitado sem tornar o filme mais longo ou complexo do que já é, mas definitivamente não seria fazendo Bacurau emular as execuções públicas do Vale do Anhangabaú. Os bacurauenses podem ser muitas coisas, mas definitivamente, felizmente, não são cidadãos de bem, e não acreditam que bandido bom é bandido morto.

[1] Sim, eu sei que a tradução correta de red herring, expressão em inglês que significa pista falsa, é “arenque defumado”. Me deixem com meus anglicismos. :p

[2] Duanne Ribeiro, “A política de e a partir de Bacurau”, 23 de setembro de 2019: https://revistacult.uol.com.br/home/a-politica-de-a-partir-de-bacurau/