Os Mortos Não Morrem e o zumbi zen de Jim Jarmusch

“Certa vez, disse o Budha uma parábola: um homem viajando em um campo encontrou um tigre. Ele correu, o tigre em seu encalço. Aproximando-se de um precipício, tomou as raízes expostas de uma vinha selvagem em suas mãos e pendurou-se precipitadamente abaixo, na beira do abismo. O tigre o farejava acima. Tremendo, o homem olhou para baixo e viu, no fundo do precipício, outro tigre a esperá-lo. Apenas a vinha o sustinha. Mas ao olhar para a planta, viu dois ratos, um negro e outro branco, roendo aos poucos sua raiz. Neste momento seus olhos perceberam um belo morango vicejando perto. Segurando a vinha com uma mão, ele pegou o morango com a outra e o comeu. ‘Que delícia!’, ele disse.” 1

“Depois que a vida acaba, a vida após a morte continua.” Esse é o refrão da música-tema do filme Os Mortos Não Morrem (The Dead Don’t Die, 2019) de Jim Jarmusch. Jarmusch é um diretor norte-americano que possui uma sólida carreira no cinema independente com filmes que são verdadeiros Koans-Movies em sua capacidade de criar suas obras com breves diálogos com o espectador sobre temas ou perspectivas que não se filiam à razão. A grande maioria de seus filmes são procedimentos meditativos que não apelam para a razão, mas tem o objetivo de desencadear uma compreensão interna, um insight, no expectador. Vários filmes de Jarmusch adotam essa técnica, como Paterson (2016), Ghost Dog: O Caminho do Samurai (1999) e especialmente Os Limites do Controle (2009).

Em Os Limites do Controle, temos o ator marfinense Isaach de Bankolé como um homem responsável para realizar trabalhos e resolver problemas vindos do mundo do crime. Ele não tem nome. É creditado apenas como Lone Man. Apesar de não falar a língua espanhola, Lone Man começa a receber pistas e dicas que vão levando-o para diversos caminhos misteriosos em Madrid. Ele não sabe falar espanhol, mas mesmo assim é enviado para Madri para realizar um trabalho. Focado em sua missão, ele começa a receber várias mensagens e instruções importantes para sua missão e que o colocarão em um caminho de mistério e dúvidas em meio à cidade espanhola. A trama indica que veremos um thriller policial repleto de ação e reviravoltas. Nada mais distante. A dificuldade do agente do submundo com a língua espanhola é o mote para diversos encontros e desencontros numa produção com artistas globais (Bill Murray o único americano) onde todos os personagens adotam ou praticam algum tipo de ritual. Não sabemos quem ele é, não sabemos bem qual a missão dada a ele pela organização criminosa e mesmo as mensagens que recebem dos seus contatos na Espanha são pouco objetivas. O que compreendemos é que o Tai Chi é essencial para sua jornada, pois ele o pratica todas as manhãs antes de encontrar um novo contato do mundo do crime.

Em Os Limites do Controle, Jarmusch oferece a construção de toda uma não-jornada labiríntica de seu personagem sem nome, Lone Man, para ir em busca de um sistema filosófico alternativo que lhe possibilite uma apreensão alternativa do mundo que o cerca. O que impressiona em Os Mortos Não Morrem é uma continuidade temática de Jarmusch de produzir Koans-Movies, mas agora expandindo esses contos metafóricos com questões contemporâneas que capturam o momento de sua época. Porque Os Mortos Não Morrem é um filme de zumbis, certamente, mas um filme de zumbi zen, em sua tradição de Koans-Movies, em que Jarmusch aponta para o inexorável Apocalipse Zumbi em decorrência da exploração sem limites do Planeta Terra. Os Mortos Não Morrem é um filme sobre as consequências do descaso humano com a natureza.

Mas, importante frisar, Jarmusch não trata do tema de forma alarmista para conscientizar as pessoas através do terror, pelo contrário, ele usa e abusa do recurso do humor, do non-sense, da crítica e da metalinguagem. Os zumbis de Jim Jarmusch repetem exaustivamente as coisas com as quais eram obcecados em vida. Como a velha senhora zumbi que, após a morte, tem o caminhar trôpego, mas não cansa de repetir uma de suas obsessões em vida: Chardonnay. Há vários outros exemplos, como o zumbi que repetidamente pede: Wi-Fi. Mas dentre tantos zumbis, a caracterização mais improvável e divertida é de Iggy Pop.

Os Mortos Não Morrem se passa em uma típica cidade do interior dos EUA, repleta dos tradicionais caipiras e xerifes que buscam manter a ordem. Os dois personagens principais são os xerifes vividos por Bill Murray e Adam Driver. Também há a assistente dos xerifes vivida por Chloe Sevigny, representando uma mulher caricata parecendo sair de um filme convencional de terror. Aliás, essa brincadeira com os clichês do gênero de filmes de zumbis é uma constante no filme de Jarmusch. Depois que o personagem de RZA entrega as encomendas para a comic shop, o dono, um sujeito jovem e antissocial, apelidado Frodo, pergunta para RZA se ele não se importaria de compartilhar algumas palavras de sabedoria antes de ir embora depois de sua última entrega. E RZA compartilha sua sabedoria. É uma ironia de Jarmusch ao tradicional estereótipo dedicado a personagens negros que habitualmente são os mestres simplesmente por sua origem racial.

Os personagens da cidade pequena começam a estranhar o tempo não parar mais e alguns sumiços de animais. Tudo como se o clima e a ecologia estivessem mandando sinais para a cidade de que algo está errado. Nas rádios, também ouvimos constantemente denúncias a respeito de determinadas atividades empresariais de extração no Ártico que poderiam estar afetando a rotação do eixo da Terra, o que explicaria as mudanças drásticas nas definições do que seria dia ou do que seria noite. As autoridades do governo e os empresários das empresas extratoras refutam qualquer tipo de alarmismo; mas os cidadãos daquela pequena cidade já começam a sentir os efeitos da mudança chegando.

Curiosamente, um personagem do filme, vivido por Tom Waits, é o que se mantem à margem disso tudo, praticamente como um observador, como um lunático, alguém que não deve ser ouvido ou mesmo deve ser perseguido. Um simples roubo de galinha é jogado em suas costas, tamanha a satanização do personagem de Tom Waits. Mas Waits, no filme, é como um personagem descrito por Slavoj Zizek (citando Kierkegaard) quando se refere a Greta Thunberg: Ambos são apóstolos. “O apóstolo é puramente função formal de quem dedicou sua vida a testemunhar uma verdade impessoal que o transcende.” 2

E é essa a função de Waits ao longo do filme, ser o apóstolo que ninguém, absolutamente ninguém, ouve. Até porque sua mensagem está mais no seu modo de vida do que exatamente em discursos assustadores. Talvez haja outro apóstolo no filme, vivido por Tilda Swinton, em uma interpretação, como habitual, única, na pele da dona do necrotério, de longos cabelos loiros, sotaque estranho e com uma habilidade impecável na arte de usar sua espada samurai. Talvez a personagem possa lembrar a alguns de A Noiva (Uma Thurman) em Kill Bill Vol. 1 e Kill Bill Vol. 2. Mas como já citado, Jarmusch já trabalhou bem antes com o conceito de um samurai errante e urbano vivido por Forest Whitaker em Ghost Dog. A samurai de Tilda traz todo seu traço zen e acrescenta o elemento de non-sense ao caos apocalíptico de zumbis que está à sua volta. Assim como o personagem de Tom Waits, ela não pertence àquele mundo.

Toda a trajetória de Jim Jarmusch é a de um apóstolo zen que age através de seus Koans-Movies. São filmes de forma alguma alarmistas, nem sempre chamando um grande público, nem sempre com mensagens fáceis, mas sempre evitando desviar o foco do pequeno conto moral que está sendo contado. O autor aqui fica em segundo plano. Como diz Zizek: “É assim que um verdadeiro apóstolo fala, apagando-se da imagem várias vezes, plenamente consciente de que o foco nela, mesmo que seja comemorativo, funciona como uma distração de sua mensagem”. Aqui, Zizek se refere à fala de Greta Thunberg, quando ela afirma que a última coisa que ela quer são os holofotes sobre ela ou selfies com políticos. A mensagem é mais importante que o mensageiro.

Os Mortos Não Morrem é um filme de zumbis com uma mensagem clara. A de que estamos a caminho de um precipício, quer seja por nosso ensimesmamento, por nossa incapacidade de conseguir enxergar o outro, o diferente, seja esse ser diferente, alguém solitário, da classe trabalhadora, negro, mulher ou LGBT ou ainda pela absoluta ganância e despudor da classe política em transformar todos os outros seres em simplesmente massa de manobra para a perpetuação de um sistema que, como diria Zizek, se sustenta justamente pela perpetuação de sua falência.

Curiosamente, Slavoj Zizek e Jim Jarmusch tem um ponto em comum a respeito dessa catástrofe ecológica: o humor. Porque ambos reiteram, respectivamente, em seu artigo e em seu filme, que somos apenas uma única espécie no Planeta Terra e que, assim, somos muito pequenos para ser uma ameaça à Terra. Para ambos, a Terra é indiferente, sobreviveu a desastres muito piores do que a possível autodestruição de uma de suas espécies. Nesse diálogo entre ambos, se poderia afirmar que essa é apenas uma hipótese dos autores, ou seja, não há exatamente certeza se a Terra poderá sobreviver ao processo de descaso da espécie humana para com ela. Nesse sentido, Greta Thunberg apresenta uma visão mais incômoda justamente por se afastar dessa visão até certo ponto dúbia de que a natureza é superior e a humanidade passageira. Não estamos certos de nada e nem conscientes da exata extensão dos danos que estão sendo causados à natureza. O tom apostólico de Greta, na verdade, é um tom que incomoda porque desvela a nossa completa e total ignorância em relação ao tema da ecologia, sua importância para nossa sobrevivência e, ainda mais, como ele pode e deve ser articulado com quaisquer outras pautas também urgentes, sejam elas de classe, de raça, de etnia, de gênero ou de liberdade sexual.

1. https://saleeladeviterapias.blogspot.com/2014/06/o-que-e-um-koan.html

2. https://spectator.us/greta-thunberg-genius-apostle/