O Show de Truman para além do filme

Truman

Minha relação com O Show de Truman é muito engraçada, nunca consegui assisti-lo por inteiro, somente em pedaços. Depois de diversas tentativas frustradas, finalmente o streaming chegou e pude assistir a esta comédia prazerosa dos anos 1990. Mas, bastou alguns minutos para a comédia se tornar aflição e ansiedade causadas pela empatia com o personagem principal.

Quando Truman Burbank chega ao limite do cenário e sobe as escadas para a saída, ouve a voz do criador. O diretor do programa, que o via como um filho, tenta impedi-lo alertando sobre o “mundo do lado de fora” não ser um lugar tão agradável e amistoso como seu vilarejo. Achei que ele pudesse se arrepender, mas quando cruza a porta e o filme real termina, fiquei impactado imaginando diversos destinos diferentes para o personagem.

O primeiro choque teria sido com a cor do céu cinza, muito diferente do azul celeste do estúdio, o ar poluído e o inconfundível som de caos de uma metrópole. Em seguida, o assédio da mídia e de milhares de fãs. A superexposição de um mundo conectado, memes, sua imagem em todos os lugares e suas atitudes sendo questionadas a cada momento. Os dias seriam uma avalanche de conteúdo numa velocidade absurda.

O mundo real também é cercado por câmeras e constantemente manipulado para ter mais likes. Os números se tornaram algo fundamental na vida das pessoas. Nos Stories, acompanhamos cada momento de nossos amigos, e no Big Brother podemos jogar, comentar, julgar e condenar livremente os outros sem sermos punidos.

Se hoje muitos já sofrem de depressão e síndromes causadas pela mídia, imagine alguém que teve toda a sua vida exposta ao público sem cortes. Suas amizades, amores e família foram atuação, sua vida foi somente um programa de televisão que alegrava e servia como um escape para os telespectadores.

Se Truman fosse real, todos nós seriamos cumplices do seu sequestro. Será que o programa seria considerado uma experiência artística coletiva? O diretor seria exaltado? Isso me lembra o caso do diretor Bernardo Bertolucci e Marlon Brando no filme Último Tango em Paris. A cena de estupro foi real, todos sabiam menos a atriz Maria Schneider, que nunca foi ouvida e teve sua carreira abalada.

Nós espectadores fomos cúmplices, exaltamos a imagem de Brando e Bertolucci e deixamos seu crime no esquecimento. E é exatamente assim que eu imagino o destino do diretor de Truman, algumas críticas no início, mas com sua obra “reconhecida” no final.

A verdade é que as pessoas gostam de uma boa fofoca. A história de Truman pós-confinamento seria canibalizada até definhar. É só analisar os conteúdos que viralizam na internet, violência mental e física, pegadinhas, cenas de crime e principalmente escândalos de celebridades. Você pode achar que eu estou exagerando, mas uma risada nossa pode custar muito para alguém.

Devemos nos responsabilizar mais sobre as nossas ações online. Os likes, compartilhamentos e comentários maldosos são disfarçados através do “direito de expressão”. Quantas vezes vimos opiniões racistas sendo propagadas como uma piada? Essa falta de empatia pelo próximo gera um mundo frio e sem alma.

Então foi difícil pra mim imaginar uma vida incrível para Truman quando ele cruzou aquela porta. Assim como o mito da caverna de Platão, Truman não poderia voltar atrás. O lugar seguro que ele conhecia não existia mais e sua busca pela realidade o trouxe a um mundo diferente e ao mesmo tempo muito parecido com que ele vivia.

Imagino que o personagem tenha se isolado em um lugar longe de tudo, sem internet, sem nada, apenas ele e o mundo, em uma tentativa de se sentir no controle de sua vida. Também tenho uma visão mais pessimista, com ataques da mídia a todo momento até sua mente ser consumida completamente.

Todos nós somos Trumans, colocamos nossas vidas online em troca de likes e reconhecimento sem pensar nas consequências. E mais cedo ou tarde também teremos uma porta para escolher se devemos ficar no programa ou sair e conhecer o mundo real.

E até lá, se por acaso não nos virmos, bom dia, boa tarde e boa noite.