Queen Sono (2020), Kagiso Lediga.
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Uma série maneira de espionagem com bastante história e cultura da África do Sul. Queen Sono é uma agente secreta sul-africana que tenta equilibrar a vida pessoal e as missões que realiza para o Grupo de Operações Especiais, enquanto lida com os reflexos de seu passado trágico. Ela é filha de Safiya Sono, uma revolucionária famosa que lutou contra o apartheid e foi assassinada. Até hoje, contudo, há questões não esclarecidas sobre o assassinato de sua mãe que atormentam a espiã.
A protagonista, maravilhosamente interpretada por Pearl Thusi, é uma espiã durona, como os grandes espiões do cinema. É uma personagem divertida e extremamente complexa. O que deixa ela divertida, na verdade, é que ela tenta o tempo todo equilibrar sua vida dupla. Ao contrário dos espiões clássicos, a Queen Sono não tem aquela coisa de ser órfã, de não ligar para nada, de não estar presa a nada. Não, ela tem uma vida e ela tenta o tempo todo lidar com essa vida. O negócio é que como ela é muito impulsiva e muitas vezes dá tudo errado, como quando a vilã a aborda no meio do bar e elas começam a sair na porrada. É uma coisa que cria certa humanidade e ajuda bastante a personagem. A Pearl Thusi é muito boa, cheia de carisma. Ela faz uma Queen Sono como quem você realmente se importa. Você fica querendo ver como é que ela vai sair das situações que muitas vezes ela mesma cria. E o mais interessante é que a própria atriz faz as cenas de ação da série. Ela treina bastante artes marciais e ela faz a maior parte das sequências, sem usar qualquer dublê. E isso que torna as cenas de luta mais legais, porque elas parecem mais brutais e pesadas. Ao mesmo tempo, acabam ficando emocionantes. Uma sequência, que se passa toda dentro do apartamento da Queen Sono, é uma sequência de luta meio tensa, com várias coisas envolvidas. É muito bem-feita e termina de uma maneira ótima, porque ela coloca o cara de calças arriadas preso na cadeira e o tortura usando café. É muito bom.
Uma outra coisa que é muito boa na série é o fato da história se passar toda na África do Sul e aborda momentos históricos do país. O fato é que a África do Sul, durante muito tempo, passou pelo apartheid e a história aborda justamente as consequências a longo prazo que esse período gerou no país, como o que aconteceu depois que o apartheid foi encerrado e como que a espiã e sua agência precisam lidar com os resquícios disso, porque a corrupção ficou na política e em outros aspectos da dinâmica política que envolve o país pós-apartheid.
Vale ressaltar que, apesar do que possa parecer, visto que a série aborda muitos aspectos históricos da África do Sul, Queen Sono não é baseada numa história real. É basicamente um drama de espionagem fictício com algumas partes inspiradas em coisas da realidade. Focando principalmente nas questões políticas do país, e se inspirando nelas, principalmente no movimento anti-apartheid, a série combina esses fatos para abordar questões relevantes. O interessante é justamente podermos conhecer um pouco sobre como o país lida e vem lidando com as questões que ficaram por causa da apartheid.
Inclusive, existe uma questão que tem a ver com o Die Koperasie, que é um grupo secreto da época do apartheid citado na série. Num dado momento, eu até fiquei curioso de que talvez pudesse ser um grupo real que existiu e fui pesquisar sobre, mas vi que não existiu uma organização chamada de Die Koperasie. E apesar do Die Koperasie ser um grupo fictício criado para a série, o grupo, na verdade, tem seu fundo de verdade porque é inspirado em coisas que aconteceram na época da apartheid.
Na época que o movimento contra o apartheid começou a crescer e começou a haver muita resistência, o regime começou a se tornar mais cruel contra os anti-apartheid. As pessoas que se opunham ao regime eram sumariamente torturadas, castigadas e muitas eram chicoteadas ou condenadas à morte por enforcamento. Esses atos tinham como objetivo assustar as pessoas. Era uma violência que, no fim das contas, gerava mais violência e a juventude do país na época se tornou muito militante. O período entre 1985 e 89, principalmente, foi um período muito violento. A resistência contra o apartheid começou a tomar muitas cidades e, aos poucos, começou a derrubar governos e líderes governamentais, o que eventualmente levou ao fim do apartheid. Mas o Die Koperasie, mesmo, nunca existiu. O grupo é usado como uma espécie de predecessor do Grupo de Operações Especiais, do qual, em 2020, a Queen Sono faz parte. A série explica que o Die Koperasie foi desfeito depois que o apartheid acabou e o Grupo de Operações Especiais foi criado e desenvolvido. Só que o lance da série é que, como o Die Koperasie era um grupo que visava a manutenção do regime autoritário e praticava tortura, fica toda uma questão dentro do Grupo de Operações Especiais que gera desconfiança na própria Queen Sono. Isso cria uma situação de corrupção e de possível traição dentro de sua própria equipe, o que estabelece muita desconfiança e cria um clima bem comum de filme de espionagem em que você nunca sabe quem é o mocinho, quem é o vilão, quem é o aliado e quem é o inimigo.
Outra coisa curiosa na história é sobre a vilã russa, a Ekaterina Gromova, que coordena a corporação chamada Superior Solutions, que tem como objetivo tentar se inserir no governo sul-africano, aumentar a própria influência e dominar a área de segurança do país. Só que ela faz isso usando como disfarce uma espécie de exército paramilitar chamado Watu Wema, que aparece como um exército revolucionário que está libertando o povo dos tiranos e da corrupção, mas que, na verdade, está trabalhando para essa corporação russa para desestabilizar o país e conseguir favorecer que os russos entrem no país como fornecedores de armas e segurança. É aquele negócio, você cria a demanda e coloca ali o seu exército para tomar conta dessa demanda. Esse é o objetivo da Ekaterina Gromova na história. E há uma razão para ela estar ali.
Na verdade, a ideia se inspira em um aspecto real da história da África do Sul, porque existe uma organização paramilitar russa conhecida como Grupo Wagner, que tem uma presença bastante ativa nos países africanos. O Grupo Wagner tem inclusive influência na Crimeia, na Síria, na Ucrânia, em diversos outros locais onde existem conflitos. As atividades do grupo se tornaram ainda mais conhecidas por causa da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que vem ocorrendo desde 2014 e ganhou ainda força em 2022 com o aumento dos conflitos armados entre as nações. No caso da África do Sul, há inclusive algumas matérias que falam sobre uma suposta intervenção da Rússia na tentativa de influenciar as eleições no país africano. Por isso, não é uma coisa tão exagerada ou impossível dentro do contexto da história que uma organização como a Superior Solutions exista, sendo liderada por uma mulher como a Ekaterina Gromova, tentando se inserir na realidade sul-africana, depondo e manipulando políticos e controlando falsos exércitos revolucionários.
O bom de a série coincidir com a história real é justamente o fato de que, como uma boa história de espionagem, existem muitos contrapontos e contradições que são colocados em conflito dentro da história, além da ação e da investigação, e há várias questões históricas que também são colocadas em evidência.
Ao mesmo tempo, nós somos colocados nos próprios cenários e eventos sul-africanos, como, por exemplo, nas sequências finais dos últimos episódios, em que ocorre um evento de futebol com as clássicas vuvuzelas, além de alguns aspectos culturais dos jogos de futebol sul-africano, como, por exemplo, os caixões que são levados pela torcida. A série usa seus cenários e aspectos culturais de uma forma sempre muito equilibrada e muito bem-feita.
Também contribui ao fato de que o elenco também é bastante afiado, especialmente a Queen Sono da Pearl Thusi e sua avó, Mazet, interpretada por uma famosa atriz africana chamada Abigail Kubeka. A avó é responsável por provavelmente alguns dos momentos mais adoráveis e divertidos da série. A relação dela com a neta favorece bastante porque existe toda uma trama que é construída também envolvendo a necessidade da Queen Sono de manter sua vida dupla e as consequências dessa escolha de conciliar suas duas vidas.
A série é rapidinha de se assistir. São só seis episódios. Essas séries que têm poucos episódios funcionam muito bem porque conseguem contar suas histórias de uma maneira consistente e concisa. Queen Sono faz isso muito bem. Vale a pena conhecer essa que foi a primeira produção africana da Netflix. Uma série que tem uma protagonista maravilhosa, funciona muito bem e ainda, de quebra, nos apresenta um pouco sobre a história da África do Sul. Recomendo fortemente.
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