A Guerra dos Tronos (1996), George R.R. Martin.
Impactante. É apenas um dos adjetivos que poderiam ser usados para descrever uma das mais impressionantes sagas de fantasia da literatura. Já contei aqui em outro post o quão difícil foi para eu ter esta saga em mãos antes da Editora Leya lançar o primeiro livro aqui no Brasil. Pois bem, graças a isto, ler As Crônicas de Gelo e Fogo se tornou, pra mim, não só uma necessidade primordial como uma questão de honra. E honra, diga-se de passagem, é um dos elementos primordiais que movem a trama; não só honra, mas também traição, amor, ódio, vingança, intriga, heroísmo… uma profusão de sentimentos que tornam a história mais humana e mais próxima de seus leitores, apesar de seu cenário fantástico.
A Guerra dos Tronos (A Game of Thrones), primeiro livro de uma série de (teoricamente) sete, é aquele tipo de leitura que prende o fôlego da primeira página até a última… e olha que são 562. É o tipo de livro que pode ser lido em uma ou duas semanas, mas o prazer de degustá-lo, ler cada minúcia, conhecer os milhares de personagens e desbravar cada parte do mapa do mundo, faz com a leitura demore… pelo simples prazer da demora. Sério. George R.R. Martin consegue transportar o leitor para dentro de seu mundo com primor de detalhes, em descrições que te deixam com água na boca. A história explora uma era de decadência, quando os elementos fantásticos que uma vez povoaram o mundo se perderam e tornaram tudo mais soturno e sombrio. A graça e a magia deram lugar as guerras e intrigas impetradas pelos humanos. Seres místicos como os dragões estão extintos e são citados apenas como aquelas lendas em que ninguém acredita. A magia, se é que ela existe de verdade, é temida e, para muitos povos, odiada. Isto sem mencionar os Andarilhos Brancos (traduzido aqui como os Outros). Tudo em A Guerra dos Tronos reflete uma realidade crua e sombria, que trabalha seus personagens com uma certa proximidade do nosso mundo real, embora se passe num mundo fictício. Ao longo do caminho, no entanto, viajamos por uma estrada perigosa e intrigante, com diversas reviravoltas e caminhos inesperados. George R.R. Martin é, definitivamente, um dos autores mais imprevisíveis de que consigo me lembrar. Ele te pega pela mão e te conduz por onde ele deseja te levar, mas é impossível saber em que terreno você está pisando e qual vai ser o seu real destino. De repente, você já está com as calças na mão, fascinado (e, muitas vezes, furioso) com os resultados da história, mas embasbacado com a forma como a trama é conduzida. Personagens apaixonantes são apresentados, desenvolvidos, elevados e enfraquecidos e, com o desfile de constante de suas qualidades e defeitos, somos pegos adorando seus feitos, ao mesmo tempo em que não podemos sequer nos dar ao luxo de nos apegarmos demais a eles. Este conflito de interesses e emoções revela ainda mais da obra que é A Guerra dos Tronos. Apenas esteja certo de que você não vai conseguir parar de ler antes de terminar e, quando o fizer, terá um desejo insaciável pelo próximo livro. Esta é a magia de As Crônicas de Gelo e Fogo.
Na história, somos apresentados aos Sete Reinos do continente de Westeros, situado num mundo de conceitos medievais, onde as estações não são definidas. Longos anos de um verão quente são normalmente prosseguidos por um inverno igualmente intenso; quanto mais tempo de verão, mais tempo de inverno… e o último verão já dura dez anos. Agora, “O inverno está chegando”, como prenuncia a Casa Stark, os grandes regentes das terras do Norte, Winterfell. Os membros da família proferem este lema com pesar, cientes de que tempos difíceis virão. Além do frio metafórico do inverno, Westeros ainda enfrenta a temperatura gélida comum à região norte do continente, um lugar onde árvores têm rostos e as crianças andam ao lado de lobos gigantes que estão vinculados aos seus destinos. Winterfell está localizado ao sul de uma imensa Muralha que separa os Sete Reinos de florestas selvagens e sombrias. Para lá deste muro de gelo, bárbaros perigosos espreitam e forças sobrenaturais desconhecidas, tão antigas quanto o próprio mundo, estão se reerguendo, trazendo uma ameaça maior do que qualquer um é capaz de imaginar. Os Outros, como são chamados, são aparentemente mortos-vivos ligados ao frio, com peles esbranquiçadas e olhos azuis brilhantes. São seres míticos na trama e que, como os mitos que são, aparecem apenas raramente e de forma contida, o que evidencia ainda mais a natureza enigmática das criaturas. Embora o prólogo do livro seja centrado no aparecimento destes seres, eles não são muito explorados ainda. O autor parece querer deixá-los misteriosos para surgirem com mais força quando os elementos mais sobrenaturais ganharem força, o que já deve acontecer a partir do segundo livro: A Fúria dos Reis.
Nesta primeira parte desta grande saga, o foco são os jogos de poder entre as Casas que governam (ou governaram) o continente. A trama começa efetivamente com a ida do Rei Robert Baratheon para Winterfell. A antiga Mão do Rei (leia-se “braço direito”), Jon Arryn, morreu e ele vêm até o Norte para convidar um velho amigo, Lorde Eddard Stark, para se tornar a nova Mão. O Lorde Stark não gosta da ideia à princípio, mas descobre que o rei pode estar em perigo e, como um homem honrado e um amigo leal, decide aceitar o fardo. A partir deste ponto, toda sua família é envolvida, direta ou indiretamente, no jogo dos tronos, uma terrível rede de intrigas e conspirações na qual apenas os astutos podem sobreviver. O grande problema para Ned Stark, como também é conhecido o senhor de Winterfell, o Rei Robert não é mais o velho amigo com quem ele lutou junto para conquistar o trono do reino há quinzes anos. Ele se tornou um soberano negligente que, mesmo rodeado por segredos e complôs, não está preocupado com seu governo ou com ambições da perigosa família de sua esposa, a Rainha Cersei Lannister.
O livro trabalha com uma narrativa para lá de interessante, mostrando alternadamente os pontos de vista de personagens importantes para o desenrolar da história como capítulos, ao invés de usar a convencional divisão numerada. Uma narrativa ousada, devo admitir, mas respeitável e envolvente. Desta forma, os personagens ganham mais profundidade e tornam-se mais tridimensionais para o leitor. Não existe um protagonista definido e mesmo que um leitor se apegue a um ou outro como principal, logo ele percebe que TODOS são peças indispensáveis no jogo. Alguns são mais desenvolvidos, outros menos, mas, partindo da premissa de que existem ainda muitos livros, é certo que personagens menos explorados ganharam destaque no futuro. Assim, acompanhamos os oito pontos de vistas de: Eddard Stark, o já citado senhor de Winterfell; Catelyn Stark, a destemida esposa de Eddard e uma das personagens que mais evoluem durante a trama; Jon Snow, o bastardo da família Stark, visto como um pária, mas respeitado por seu pai, irmãos e amigos (um personagem realmente admirável); Arya Stark, a filha mais nova, que possui um espírito rebelde e corajoso e que nunca aceita as convenções que tentam lhe impor (pra mim, é a personagem mais cativante do livro); Sansa Stark, a filha mais velha que sonha em casar com o filho do rei e ser rainha (é tão irritante que dá raiva em alguns momentos); Bran Stark, o filho mais novo de Ned, que tem um ponto de vista inusitado, mas pouco desenvolvido; Tyrion Lannister, o anão, um homem que, apesar da estatura baixa, possui inteligência e sagacidade gigantescas e nunca deixa claro de que lado realmente está; e Daenerys Targaryen, uma menina ingênua que é a herdeira do rei cujo trono foi usurpado por Robert e supostamente descendente dos dragões, mas que se torna forte e determinada à medida que descobre sua herança em meio aos brutais Dothraki. Daenerys é, de longe, a personagem que tem o melhor final no livro e a que deixa mais expectativa para as próximas histórias.
Martin consegue criar sua história usando a temática da fantasia medieval de uma forma incomparável e, sobretudo, contemporânea. É um escritor dos tempos modernos, que cresceu trabalhando no cinema e na TV e, por isso, lançou um olhar diferente sobre um assunto já recheado por estereótipos. As Crônicas de Gelo e Fogo desconstrói com eficiência muitos padrões conceituais deste tipo de narrativa. Muito se fala sobre a semelhança com O Senhor dos Anéis e, de fato, é impossível não tentar comparar as duas obras. São histórias parecidas na medida em que acontecem em mundos medievais fantásticos, repletos de seres estranhos, superstições e magias antigas. Mas as semelhanças param por aí. Enquanto J.R.R. Tolkien apresenta uma escrita mais poética e heroica, George R.R. Martin é mais áspero e sanguinário. Martin descreve lutas, morte, sexo, incesto, traições com ferocidade. É o estilo que chamam de grim dark, um tipo de fantasia muito mais pesada e sombria. As Crônicas de Gelo e Fogo e O Senhor dos Anéis são duas obras excepcionais, mas com histórias diferentes, escritas com princípios diferentes e em tempos diferentes. Ainda assim, é óbvio que Martin pega influências de Tolkien. Na verdade, uma influência ainda mais adequada seria com o realismo sujo de As Crônicas de Artur, de Bernard Cornwell.
A Guerra dos Tronos é apenas uma pequena parcela de uma grande saga. O livro vicia e, apesar da quantidade de páginas e da fonte miúda, traz uma leitura agradável e que vai prender você do começo ao fim. Pode acreditar, você fica tão ávido por saber o que vem a seguir que, quando se dá conta, já está na última página desesperado por mais. É leitura obrigatória não só para os fãs da literatura fantástica, mas para qualquer amante da literatura. “Quando se joga o jogo dos tronos, ganha-se ou morre.”
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