Batman Begins (2005), Christopher Nolan.
Um grande filme que explorou com profundidade o lado sombrio e o simbolismo do Cavaleiro das Trevas.
A década de 80 foi marcada por muitos filmes e produções que buscavam trazer de volta a criança interior. Tim Burton foi um dos nomes por trás dessa ideia com seu Batman, que mesmo explorando os aspectos sombrios da história do personagem, o fazia de forma mais alegórica e mais voltada para o público infantil, com um Batman mais heroico e não tão humano. Mesmo ao fazê-lo, Burton ainda conseguiu nos oferecer vislumbres do espírito cru das histórias em quadrinhos criadas por Bob Kane nos anos 30.
Foi uma abordagem que renovou o Batman na mídia além-quadrinhos, mas sem perder aquela pegada cult de ser bom por ser ruim tão comum ao seriado televisivo de 66, que tinha o Batman interpretado por Adam West. Tal premissa foi exacerbada em Batman: O Retorno, que, apesar dos exageros, nas mãos de Burton mantinha sua graça e seu valor. Os filmes de Burton continuam tendo um lugar cativo no coração dos fãs até hoje por causa disso, porque souberam entender o Batman, tanto pelo ponto de vista sombrio, quando pelo humor.
Depois veio Joel Schumacher e elevou a proposta exagerada trabalhada por Burton a patamares carnavalescos bizarros; com Batman Eternamente e Batman & Robin, Schumacher devastou o prestígio do Homem-Morcego, que levou oito anos para se reerguer e recuperar o respeito dos fãs. Respeito este conseguido a duras penas graças ao trabalho honorável de Christopher Nolan, que lutou bravamente contra todos os preconceitos criados pela herança de Schumacher e conseguiu fazer algo que ninguém acreditava que fosse possível — transformar um filme do Batman em algo além de um simples filme de super-herói. Algo além até mesmo de um simples filme!
O Batman Begins de Christopher Nolan, escrito em colaboração com David S. Goyer, trouxe o Cruzado Encapuzado de volta às suas origens. Na trama, somos apresentados a lenda do Batman e à sua ascensão como vigilante defensor de Gotham. Depois da morte de seus pais, Bruce Wayne (Christian Bale) viaja desiludido pelo mundo, tentando aprender sobre o crime para combatê-lo.
Em meio às suas viagens, Wayne junta-se à Liga das Sombras, liderado pelo temido Ra’s al Ghul (Ken Watanabe), onde é treinado por Henri Ducard (Liam Neeson). A liga, no entanto, tem uma visão bastante deturpada sobre como resolver os males que assolam à sociedade e, incapaz de aceitá-la, Wayne foge.
Quando retorna à Gotham, decide criar um símbolo capaz de causar nos criminosos o mesmo medo que eles causam aos inocentes da cidade. Wayne cria o Batman. Porém, a cidade está tomada pelo crime, cheia de homens corruptos em todos os escalões do poder, que garantem impunidade a criminosos como Carmine Falcone (Tom Wilkinson) — você, com certeza, conhece um ou dois lugares assim, que representam essa metáfora decadente que é Gotham. Provavelmente, mora num deles. A própria história tem nomes que servem como forma representativa para este caos: Sodoma e Gomorra. Seus inimigos revelam-se mais perigosos e ambiciosos do que simples gângsters quando surge por trás de todos os problemas o maníaco Dr. Jonathan Crane (Cillian Murphy) sob a alcunha de Espantalho.
Para combatê-los, Wayne conta com a ajuda apenas de seu mordomo Alfred Pennyworth (Michael Caine), que tem as melhores tiradas cômicas do filme; seu amor de infância Rachel Dawes (Katie Holmes), cuja escolha da atriz foi meio duvidosa, mas no fim até que funcionou; seu fornecedor de equipamentos e tecnologia Lucius Fox (Morgan Freeman), uma das melhores sacadas do diretor ao usar um personagem secundário dos quadrinhos como principal fonte de suporte ao herói; e seu grande aliado James Gordon (Gary Oldman), que era ainda só um sargento em busca de ordem e paz para Gotham.
Mas uma das grandes ideias do filme foi transformar Gotham num personagem essencial da trama. Tudo o que acontece na cidade é tratado como se a própria cidade fosse o male, tão corrompida que não se distinguia mais de seus corruptos e devia ser destruída para que, talvez, pudesse recomeçar como algo puro. Ao contrário dos filmes antigos, Nolan exacerbou não o heroísmo, mas o medo que impera na sociedade contemporânea, na qual somos assolados por violência e insegurança todos os dias de nossas vidas, temerosos cada vez que precisamos sair de nossas casas para as ruas perigosas de nossas cidades. Nolan foi incisivo e ainda mais cru em sua abordagem, abrindo espaço para uma proposta que até então não havia sido explorada: a visão sombria de um herói quando aproximada à nossa realidade.
De um garoto que sai à noite com os pais e os vê sendo assassinados. Que decide passar o resto dos seus dias numa jornada de vingança contra o crime que criou o assassino de seus pais. De um garoto que se torna um homem, treina seu corpo e mente para lidar com a escória, aprende a conviver com o medo e conduzi-lo contra seus inimigos. Pois o medo move tudo e todos — subjuga tudo e todos. De um homem que se torna assim uma criatura da noite, escura, terrível, medonha — tão medonha como um morcego. O herói aprende a superar seu medo e usá-lo a seu favor, como as pessoas da nossa sociedade precisam lidar com seus medos e usá-los para sua vivência — ou sobrevivência. Batman é um retrato da nossa sociedade tanto quanto é um retrato de Gotham.
Nolan entendeu isso, entendeu que Bruce Wayne não veste a máscara do Batman, mas o Batman veste a máscara de Bruce Wayne — pois vivemos num mundo onde viver escondido atrás de uma máscara, atrás dos muros de nossas “mansões”, é importante para nossa segurança e talvez até mesmo para a dos outros. Por entender plenamente o homem por trás do herói, Nolan conseguiu, diferente de Burton, mostrar um Batman mais humano e não tão heroico. Por isso deu tão certo!
E para fundamentar sua narrativa sombria, o diretor e seu companheiro de roteiro recorreram justamente às histórias que tratavam de escuridão e decadência. Aproveitaram-se de elementos típicos dos filmes noir e de gângsters, com a tradição de heróis vingadores moralmente ambíguos, policiais corruptos, mundo cínico e apático à beira de um colapso — tanto que Gotham enfrenta um período pós-depressão (como é comum nos noir). Mais do que isso, eles acrescentam elementos dos suspenses expressionistas de Fritz Lang, das novas influências para o noir dos Irmãos Coen, das conspirações dignas de filmes de espionagens — especialmente James Bond —, dos filmes de ninja e kung fu. Tudo isso embasado pela mitologia do herói nos quadrinhos, com referências fortes aos arcos Batman: Ano Um e O Cavaleiro das Trevas, criadas por Frank Miller.
Nolan nos apresenta em todas as suas formas a construção de um mito, do Batman desde seu treinamento até a criação do uniforme e o desenvolvimento dos aparatos tecnológicos que o ajudarão em sua luta contra a corrupção.
Ainda que tenha sido feito como uma história de origem, algo que muitos já estão cansados de ver no cinema, Batman Begins conseguiu fazê-lo de uma forma consistente não só por apresentar uma nova realidade para o Homem-Morcego, mas por nova forma de fazer cinema com super-heróis — forma que vem sendo seguida por muitas produções desde então.
Um momento marcante, por exemplo, é quando temos nossa primeira impressão do herói no filme. Estamos prontos para vê-lo em ação, mas Nolan faz algo diferente, nos mostra o Batman pelo ponto de vista do criminoso e nos instiga o mesmo suspense que o herói deseja instigar em seus inimigos. O Batman surge das sombras, atraindo seus inimigos para elas e num piscar de olhos arrastando-os para o alto de forma impiedosa, como um monstro — por que não dizer, como o Alien de Ridley Scott. Essa é a noção do medo apresentada pelo filme e, graças a ele, tomamos conhecimento real do motivo pelo qual o Batman inflige tanto medo em seus adversários. E o que falar do Batman sendo protegido por uma revoada de morcegos — FODA!
Sem mencionar o fato de que o ator Christian Bale ficou perfeito vestido no traje negro e com aquela voz distorcida. Na verdade, todo o elenco mostra-se excepcional do começo ao fim, tudo coordenado com as mãos sábias e precisas de Christopher Nolan. O visual transmite toda a atmosfera pesada e decadente da cidade perdida, o que até mesmo nos faz entender as motivações dos vilões. Mas também recebemos boas doses de ação e a adição de um batmóvel especialmente impactante, o Tumbler — que lembra um pouco a versão do veículo no quadrinho O Cavaleiro das Trevas. Esse é um batmóvel que sem dúvida dificilmente será esquecido!
Batman Begins é um exame detalhado sobre seu personagem principal, uma visão minuciosa sobre as sombras que se escondem sob a natureza humana — algo que sempre esteve presente nas histórias em quadrinho do herói. Porque ele é um herói apesar de tudo, apesar de todos os defeitos. Ele faz o que é preciso porque às vezes é necessário fazer o que é preciso. Christopher Nolan entende seu personagem e sua obra e, por isso mesmo, tratou de conduzi-la com a seriedade necessária, sem gracejos ou desvios. Nolan fez o que era preciso. E conseguiu algo realmente digno de respeito. Algo que representava apenas um começo, mas tão promissor que manteve seu caminho firme rumo ao ápice da escuridão — o ápice que viria a ser conhecido como Batman: O Cavaleiro das Trevas.
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