True Detective (2014), Nic Pizzolatto e Cary Fukunaga.
Um fenômeno que não é tão novo, mas vem acontecendo com frequência cada vez maior, é o investimento que atores e realizadores do cinema vêm fazendo na televisão. Muitos atores, em busca de trabalhos mais desafiadores, já que muitos filmes produzidos para o público jovem hoje em dia são mais voltados para o entretenimento ou têm seus temas fortes mais amenizados, estão procurando por esses novos desafios na televisão. Eles não estão abandonando o cinema, mas estão diversificando suas áreas de atuação, estimulados ainda pelo fato de que a qualidade e o alcance dos programas de TV aumentaram consideravelmente.
Quando se trata de conteúdo adulto, uma das maiores obsessões do universo televisivo é certamente com as histórias de serial killers e dos homens danificados que perseguem implacavelmente esses assassinos — um tema que já foi mais recorrente no cinema, mas que agora desfruta de maior espaço nas séries de TV, normalmente com qualidade admirável. Alguns são assassinos ritualísticos, outros são assombrações, outros apenas resultam de acontecimentos terríveis, demonstrando eventualmente que existe escuridão no mundo, mas também que existe sempre uma luz pronta para iluminar essas trevas.
A severidade implacável de True Detective apresenta um forte argumento que expressa o fascínio da TV pelo desvio de comportamento abominável que leva a reforçar a escuridão que permeia o mundo. A proposta de que, se você tocar a escuridão a escuridão tocará você de volta, destaca a temática da trama. Desse sentimento de escuridão interior, surge o autoconhecimento que pode ou não levar à luz. Sem escuridão não há luz, e vice-versa. Essa percepção é evidente a cada episódio e na forma como a série exalta virtudes diferentes de muitas histórias de assassinatos que vieram antes — um reflexo da forma como o programa é produzido, com uma execução bastante específica e um design marcante.
O que mais chama a atenção em True Detective — além do fato de ser uma série da HBO, reconhecidamente eficiente na exploração de temas adultos e sombrios em seus programas — é que a série foi concebida como a abertura de oito episódios de uma antologia, que será impulsionada principalmente pelas escolhas narrativas de seu escritor Nic Pizzolatto (The Killing, outra série sobre assassinatos) e do diretor Cary Fukunaga (Jane Eyre). Ao contrário da maioria dos programas que trazem em diferentes escritores e diretores para cada episódio, Pizzolatto e Fukunaga atuam respectivamente como o único roteirista e o único diretor da série, uma escolha sábia, que lhes permite aplicar uma visão particular e encadeada ao processo, quase como se a série fosse um grande filme de oito horas dividido em partes.
A própria qualidade da série é cinematográfica, da mesma forma que já vimos em Band of Brothers, Roma, Game of Thrones e outros programas da HBO. Sensação reforçada pelas presenças de Matthew McConaughey e Woody Harrelson no elenco — e ver esses dois excelentes atores juntos em cena é estimulante. Apenas pensar nessas características cinematográficas, no entanto, seria simplificar demais o trabalho excepcional de Pizzolatto e Fukunaga, que apesar de passarem esse sentimento de grande filme, conseguem criar vários capítulos individuais atraentes e organizados para contribuírem com uma história mais longa.
True Detective, antes de tudo, é uma boa e velha história policial, que aborda um homicídio ritual na Louisiana investigado pelos detetives Rust Cohle (Matthew McConaughey) e Martin Hart (Woody Harrelson) com sucesso em 1995 — quando eles acreditavam ter capturado o assassino. Outro aspecto que torna o programa único é a forma como a narrativa é contada, a partir da perspectiva de dois períodos distintos: a investigação inicial dirigida por Cohle e Martin em 1995, e uma nova investigação de 2012 em que Cohle e Martin relatam sua experiência inicial para dois novos detetives, Maynard Gilbough (Michael Potts) e Thomas Papania (Tory Kittles).
Essa narrativa dupla é o que torna a trama tão intrigante, pois a conversa que acontece no tempo presente cria mistérios sobre os acontecimentos passados. Por não conhecermos plenamente os fatos do passado, certos comentários dos personagens nos levam a crer que algo aconteceu, e apesar de descobrirmos que aconteceu, não sabemos como — por exemplo, quando citam o tal “evento na floresta” logo nos preparamos para ver o que aconteceu nesse evento, e isso cria uma grande expectativa, instigando os mistérios que cercam a trama, que são vários. Mais intrigante é que a trama não trabalha para se unir. Os universos investigados são tratados separadamente, um influenciando e complementando o outro, mas não necessariamente se unindo. Uma narrativa na verdade produz uma série de novos buracos que precisam ser preenchidos na outra. E grande parte da eficácia desse conceito é possível graças ao desempenho impressionante de McConaughey e Harrelson e à dicotomia de seus personagens — tanto de um com o outro quanto de seus eus do passado e seus eus do presente/futuro.
Matthew McConaughey, que acaba de ganhar um Oscar por sua interpretação em Clube de Compras Dallas, mostra que venceu por seu trabalho como um todo, o que inclui sua participação em True Detective. Seu personagem, Cohle, é de uma misantropia fascinante, com explanações filosóficas que surgem casualmente, mas refletem sua alma marcada por tragédias e uma vida difícil. Cohle é a representação máxima da sensação de auto-conhecimento da série, também por carregar uma escuridão interior que faz dele um homem mais sisudo e cético para com a vida e as necessidades desesperadas que as pessoas assumem ao lidar com ela. Com uma visão prática e minuciosa de tudo e todos, Cohle mostra-se o verdadeiro detetive da série. Há ainda algo sobre ele, talvez sua estranha empatia ou talvez seu senso apurado de responsabilidade, que nos envolve e faz de Cohle um homem que desejamos conhecer melhor e seguir durante essa investigação. Sua transformação de um homem mordaz apelidado de “Cobrador” para um bêbado-bigodudo-fumante-inveterado é drástica, criando um mistério por si só, já que queremos saber como se deu tamanha mudança.
Então conhecemos um pouco mais de Marty, parceiro tagarela de Cohle, que revela possuir uma escuridão tão intensa quanto a de Cohle, mas que ao contrário do parceiro, não consegue lidar com isso. Cohle entende sua escuridão, e a usa a seu favor. Como um bom detetive, ele entra na mente do criminoso para entendê-lo e alcançá-lo. Marty é um homem provinciano, com uma mentalidade retrógrada e fechada, que esconde sua escuridão atrás de moralismos distorcidos. Marty não é uma pessoa ruim, mas comete erros, e não consegue assumi-los ou aceitá-los, e por isso acaba decaindo cada vez mais em seus atos. Sua arrogância de autoproclamado “cara regular” não causam o mesmo magnetismo que Cohle, especialmente pela influência que isso provoca em sua esposa Maggie (Michelle Monaghan). A mudança de Marty também é grande, porém menos impactante. Em 2012, ele parece um homem mais centrado e mais bem-sucedido, dono de uma empresa de segurança, que se torna uma espécie de “escritório de detetives particulares”, concedendo ao cenário um clima noir interessante na reta final da série.
Mais interessante é ver como o Marty relutante de 1995, que temia se envolver em mistérios que não compreendia, se transforma em um homem mais aberto e um detetive competente em 2012, capaz até mesmo de rivalizar com Cohle em capacidade de percepção e dedução. Interessante acompanhar as diferenças sutis na dinâmica entre os dois parceiros em 1995 e a dinâmica em 2012, mostrando que apesar de tudo o que passaram, eles encontraram a si mesmos na escuridão um do outro, e conseguem conviver melhor por causa disso. Se no passado Marty não conseguia aceitar as estranhas elucubrações filosóficas de Cohle e o mandava calar a boca, no presente, ele compreende, e até pergunta sobre — “o que é carne senciente?”
Como uma incursão decadente pela escuridão, True Detective é uma maravilhosa obra para a televisão. Com o talento cinematográfico de Cary Fukunaga e a fotografia bem elaborada de Adam Arkpaw, a série abre muitas de suas cenas com longas tomadas aéreas que apontam para as vistas pantanosas da Louisiana, como se a intenção fosse revelar ao público que não há nada a esconder, ao mesmo tempo em que o cenário idílico de rios, lagos e matagal esconde cabanas de madeira onde pessoas são torturadas, igrejas incendiadas com desenhos macabros e cultos obscuros que sacrificam crianças. O espectador acaba sendo instigado a olhar para esse panorama procurando por sinais de maldade, como se eles fossem expelir por entre as florestas como a fumaça que expele das chaminés nas usinas ao redor. Pois nessas tomadas também nos é revelado quão decadente é aquele lugar em que a natureza iluminada dos pântanos está sempre cercada pela poluição escura das fábricas.
Além da estrutura labiríntica de sua história e do caminho sinuoso entre quase duas décadas, o grande esforço que foi tomado na elaboração e manutenção de seu cenário bonito e brutal, e especialmente os devaneios filosóficos de Cohle, um grande detalhe que tornou a série tão impactante e bem-sucedida é sua atenção rigorosa aos detalhes — algo refletido justamente por seu protagonista “Cobrador”, sempre com um caderno de anotações na mão.
Essa ideia de trabalhar com uma proposta que aponta para referências e pistas em todos os lugares se mostrou um estímulo para os espectadores mais atentos buscarem soluções para mistérios, que se alastraram pela internet, concedendo um status para a série parecido com o que aconteceu na época dos mistérios de Lost. A excitante busca por teorias sobre quem poderia ser o Rei Amarelo, ou Carcosa, ou o porquê da encenação ritualística no assassinato, criaram associações inevitáveis com obras clássicas da literatura de horror do século XIX — sendo a mais óbvia The King in Yellow (O Rei de Amarelo), uma coleção de contos escrita por Robert W. Chambers, publicados em 1895, e que inspirou autores como H.P. Lovecraft e Raymond Chandler —, ampliando ainda mais o valor da série como história de serial killers e sobre horror existencial.
“Só existe uma história. A mais antiga de todas”, diz Rust diz Marty nos momentos finais da primeira temporada, “Luz contra escuridão”, ele conclui, resumindo a busca dos detetives pelo Rei Amarelo, a perscrutação das vidas de Rust e Marty e o violento confronto final com o assassino, fechando este capítulo da antologia, que também serve como uma espécie de prefácio para todos os capítulos que virão a seguir.
O objetivo principal foi cumprido: encontrar e punir o assassino de Dora Lange era, afinal, o objetivo inicial da narrativa. Durante esse processo, acompanhamos o desenrolar e as consequências das ações dos personagens ao longo de muitos e muitos anos com a finalidade de mostrar que é possível para homens como Cohle e Marty mudarem e se reconciliarem com quem eles são. Ainda que não ofereça respostas diretas para isso, a série sugere que uma pessoa pode mudar mesmo que seja apenas através de uma ilusão reconfortante de transformação. Como desfecho das questões que criou, a série oferece uma resolução satisfatória. Ainda que tenha mais história para contar, poderia facilmente encerrar na primeira temporada, que já seria gratificante.
Quando fala sobre a Teoria-M e o tempo como um “círculo plano” em que todo mundo está destinado a reviver os mesmos aspectos de sua vida, Rust explica sobre sua própria tentativa de dar sentido ao mundo ao seu redor, mas de certa forma, ele também fala sobre ficção e a ideia de que há realmente apenas uma história na qual estão várias outras histórias. Uma vez que True Detective está estabelecido, e a reação do público foi positiva, a história pode seguir adiante, no mesmo caminho ou por caminhos novos e diferentes, dentro de uma mesma ideia — “Luz contra escuridão”, em todas as suas muitas possibilidades. A série poderia seguir em frente para resolver alguns elementos que ficaram pendentes, como o culto que sacrifica crianças, cujos membros, como o próprio Cohle deixa claro, ainda estão à solta. A série poderia até mesmo contar uma nova história de assassinato, mas com nova roupagem e talvez até atores diferentes, mais ou menos como são as temporadas de American Horror Story.
Ainda que o foco esteja em desvendar um mistério de assassinato, a trama muitas vezes se preocupa mais em examinar o efeito duradouro do assassinato naqueles que involuntariamente são obrigados a lembrar dele, seja por associação com a vítima ou pela necessidade de encontrar respostas para as questões do como, o que e o porquê do crime. Isso é o que difere a série de tantas outras sobre assassinatos e detetives.
True Detective é essencialmente sobre a percepção de Rust e Marty sobre si mesmos como participantes inconscientes em uma narrativa muito maior, e como isso mudou ao longo de quase 20 anos. É sobretudo uma história sobre a escuridão da alma humana. Que apesar do pessimismo e da rigorosidade de sua trama, encontra no final um surpreendente espaço para o otimismo e a leveza. Olhando para o céu noturno cheio de estrelas, a escuridão parece ter mais território, mas assim como Marty, talvez estejamos percebendo o céu de forma errada — “Antigamente só existia escuridão. Do meu ponto de vista, a luz está vencendo.” — Essa é a alma do verdadeiro detetive, que mesmo depois de um grande estrago é capaz de acreditar em algum tipo de mudança que possa arrancá-lo da escuridão e trazê-lo para a luz.
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