A Tormenta de Espadas

A Tormenta de Espadas

A Tormenta de Espadas

A Tormenta de Espadas (2000), George R. R. Martin.

Ainda hoje existe quem insista numa certa divisão entre a chamada literatura de entretenimento e literatura de qualidade, como se ao autor coubesse fazer a escolha de divertir o leitor de forma rasa ou elaborar uma obra de arte com profundas reflexões sobre a vida, o universo e tudo mais. Pois quem acredita nisso deveria ler George R. R. Martin e perceber como é falsa essa dicotomia. Em nenhum livro dele isso é tão verdadeiro como em A Tormenta de Espadas (A Storm of Swords, 2000), terceiro volume de As Crônicas de Fogo e Gelo (A Song of Ice and Fire), publicado no Brasil pela Editora Leya. O belo título é plenamente justificado. Mortes e tragédias são abundantes no romance, mas tudo feito com tanta elegância que foge bastante do gore, mesmo considerando as ricas descrições das situações extremas de violência.

Neste livro, as intrigas e batalhas pela conquista do Trono de Ferro continuam. Entretanto, o autor apresenta viradas não só na trama como nos próprios personagens, surpreendendo várias vezes o leitor ao longo da leitura. Na história de Westeros, não há heróis ou vilões, mas personagens profundamente humanos e tridimensionais, como raras vezes a literatura nos apresenta.

Talvez o grande destaque nesse sentido seja Jaime Lannister. A sua oposição à Ned Stark e o que aprontou com o filho deste, Bran, o tornava uma espécie de grande vilão da série. Agora que vemos as coisas sob seu ponto de vista, entendemos os motivos que o levaram a assassinar o rei Aerys Targaryen, e até sentimos penas das coisas que acontecem com ele. E sua relação com Brienne de Tarth, com misto de respeito e rivalidade, acaba sendo um dos pontos altos do romance.

Os Lannisters, aliás, se explicam muito pela figura do patriarca Tywin. Apesar de ser a pessoa mais rica dos Sete Reinos, sua expressão é sempre fria e distante. Diz fazer tudo pela família, mas usa os filhos como meros peões, ficando cada vez mais distante deles.

Cersei se recusa veementemente a aceitar tais maquinações. Sua grande frustração parece não ser do sexo masculino, achando que só assim seria respeitada. Sua luta pela igualdade com os homens apresenta um tom de protofeminismo. O problema é que ela não percebe o quanto sua arrogância a leva a cometer erros pelos quais pagará caro.

Tyrion, embora de língua afiada e personalidade forte, acaba tendo uma necessidade inconsciente de agradar ao pai. O que não o impede de justificar sua grande popularidade neste volume. Seu arco de história aqui é o que causa mais angústia e ansiedade para saber o que vem a seguir, e seu final é surpreendente.

Nenhum destino é mais impactante quanto o da família Stark. No episódio conhecido como O Casamento Vermelho, Martin utiliza suas habilidades de escritor para dar um soco na boca do estômago do leitor. O curioso é que ele vem costurando esse desfecho por todo o livro, fazendo algumas menções e estabelecendo regras ao longo do texto, mas nada prepara o público para o acontecimento em si.

A partir daí, o ritmo engrena, e a sucessão de acontecimentos segue como nunca antes na série de livros. Se nos dois primeiros algumas passagens tornavam a leitura lenta, na metade final de A Tormenta de Espadas tudo acontece rápido, e você até esquece o tamanho do calhamaço que tem nas mãos. Aqui temos momentos verdadeiramente épicos, como o casamento de Joffrey Baratheon e Margaery Tyrell e batalha estre a Patrulha da Noite e o Povo Além da Muralha, liderados por Mance Rayder, a quem chamam de rei, embora sejam uma comunidade anarquista incrustada numa sociedade de traços medievais.

O personagem que mais amadurece é sem dúvida Jon Snow. O menino deslumbrado do primeiro livro se torna agora um grande guerreiro, que aprende a lidar com o amor, a guerra e a morte. Enfrenta diversos reveses ao longo da trama, mas nunca desiste ou abre mão de sua honra. Não à toa ganha maior destaque justamente nos momentos finais do livro: ele é o mais próximo da figura do herói, e certamente seu desfecho é o mais empolgante.

Outro personagem bastante complexo é o rei Stannis Baratheon. Sua retidão e honestidade são inquestionáveis, mas sua falta de jogo de cintura para o mundo político acaba resultando em ações extremamente impopulares. Ele é capaz de abrir mão da companhia de nobres para ter ao seu lado Davos, um ex-contrabandista, pois este não teme em lhe dizer a verdade. Ao mesmo tempo, ouve a sacerdotisa do deus do fogo Melysandre, cuja magia cada vez se fortalece mais, e parece ser o único caminho para garantir a Stannis seu lugar no trono. Mas estaria o tão retilíneo rei disposto a abrir mão de sua ética para assegurar seu poder?

Enquanto isso, do outro lado do mar, Daenerys Targaryen vai se tornando uma verdadeira rainha aos olhos do povo. Determinada a acabar com o regime de escravidão nas Cidades Livres, por onde passa cria inimizades entre os poderosos, sendo cada vez mais adorada pela população. Enquanto em Westeros os nobres preocupam-se apenas com si mesmos, esquecendo a plebe, Daenerys faz questão de ter o povo ao seu lado. O fato dela não ter convivido com a corte lhe atribui uma visão bem diferente de como se faz a política, enxergando na massa ignorada uma carência por um mínimo de dignidade que a sua ética pessoal torna impossível ignorar. Contudo, nem a presença de seus dragões faz as coisas se resolverem em um passe de mágica. A personagem aprende que a liderança também tem seu preço.

Merece ainda destaque Arya Stark. Sua jornada longe da nobreza é a maneira que o autor encontrou de mostrar como era o dia a dia e os sentimentos da população. Martin mantém o clima do resto do livro e não romantiza o extrato mais baixo da sociedade.

Aliás, essa é grande força de sua obra. Embora se trate de um mundo fantástico, os personagens são tão bem construídos que a sensação que passa é que são pessoas que existiram de carne e osso, tornando a leitura extremamente realista. Pode-se até afirmar que, com George R. R. Martin, a Literatura de Gênero alcança sua maior proximidade com a vida real.

A complexidade dos personagens e a elegância na escrita aproximam o autor da chamada Alta Literatura. Ao mesmo tempo, a trama prende e diverte o leitor de maneira bastante habilidosa. Assim, As Crônicas de Gelo e Fogo tornam-se o grande exemplo de como essa divisão da literatura é inócua e fruto apenas de preconceito. E acredite, nunca 880 páginas foram tão fáceis de ler.