No Limite do Amanhã (2014), Doug Liman.
All You Need is Kill é uma light novel escrita por Hiroshi Sakurazaka; uma dessas histórias que chama atenção pela premissa mirabolante e intrincada. É uma história que, à primeira vista, pareceria exagerada para os padrões do cinema norte-americano. Filmes sobre alienígenas devastando o mundo são comuns. Filmes sobre viagens no tempo também. Filmes que vinculam as duas propostas são mais difíceis de encontrar — e se eu for pensar em algum instintivamente, me lembro primeiro de O Retorno, que é justamente um filme japonês. — A light novel aproveita as duas propostas com eficiência. O filme que adapta a light novel, também. Muita coisa acontece nessa história impressionante, sem perder o rumo ou o foco, provando como uma história bem escrita pode render algo impressionante, especialmente quando foge dos padrões. O melhor de tudo é quando percebemos que é, SIM, possível criar um bom filme baseado em uma história japonesa, sem mudar drasticamente sua essência e seus conceitos — a estreia recente de Godzilla reforça essa premissa.
PREMISSA. Esse é o grande trunfo de No Limite do Amanhã. Assim como é o grande trunfo da light novel em que é baseado. Existem certas histórias que são capazes de te conquistar apenas pela premissa. Histórias japonesas então; são absurdamente eficientes nisso. Especialmente no meu caso. Foi assim que comecei a gostar de animes e mangás. Foi assim que descobri as light novels — romances japoneses que misturam texto rápido e ilustrações normalmente em estilo de anime e mangá. — E foi assim que cheguei a algumas light novels interessantes, como Cavaleiros do Zodíaco: Gigantomaquia, Shakugan no Shana e a própria All You Need is Kill, que li em inglês porque nem todas essas foram publicadas aqui no Brasil. — O filme cria uma adaptação consistente e valorosa do material de origem, por saber como usar o trunfo de sua premissa, e por saber como usar o trunfo de seu elenco.
Com direção segura de Doug Liman (A Identidade Bourne), a história se passa num futuro próximo, quando a raça alienígena dos Mimics (miméticos) invade a Terra, devastando tudo e matando milhões de pessoas. Incapazes de enfrentar sozinhos as armas e as monstruosidades dos Mimics, os exércitos do mundo se unem numa Força de Defesa como última tentativa de parar a invasão.
O tenente-coronel William Cage (Tom Cruise) é um oficial rebaixado e enviado numa missão suicida com um grupo de soldados destreinados e mal-equipados. Durante a missão, Cage é morto, mas leva um dos comandantes alienígenas com ele. Incrivelmente, ele desperta no começo daquele dia infernal, vivo, e se vê forçado a passar pelo dia todo novamente até o momento de sua morte. E quando morre novamente, volta e reprisa tudo de novo, e de novo. O contato com o alien o prendeu em um loop temporal que o obriga a reviver o dia de sua morte indefinidamente. À medida que volta no tempo e revive a experiência, Cage torna-se mais forte, mais ágil, mais inteligente e mais capaz de enfrentar os Mimics, ao lado da experiente combatente Rita Vrataski (Emily Blunt), que também já foi pega num loop temporal assim como Cage. A cada batalha repetida, os dois veem uma chance de derrotar definitivamente os invasores e salvar o planeta.
A trama segue a linha básica da light novel de Sakurazaka, embora sofra algumas típicas adaptações para o cinema norte-americano. O nome do protagonista, por exemplo, é uma adaptação. No original, ele chama-se Keiji Kiriya, enquanto no filme é William Cage. Mas uma curiosidade é que o personagem de Tom Cruise é chamado o tempo todo no filme por seu sobrenome, Cage, que soa exatamente como Keiji.
Doug Liman, auxiliado pela edição competente de James Herbert, cria repetições no tempo sensacionais, que refletem a urgência dos combates e tornam as circunstâncias ainda mais cruéis para os personagens. Especialmente para Cage, que precisa reviver sua morte uma, duas, três, dezenas, centenas de vezes. O teor sombrio dessa super repetição da morte, contudo, é eventualmente suavizado por momentos rápidos de humor. Um destaque é a sequência de treinamento de Cage, numa gaiola com garras mecânicas em que Vrataski é impiedosa cada vez que ele sofre algum ferimento grave. A frustração resignada de Cruise cada vez que ele precisa “morrer à força” é impagável.
Tom Cruise é facilmente reconhecido por seus papéis como herói de ação, sempre ousado, destemido e calculista. Ele é sempre aquele herói em que aprendemos a confiar logo no começo de seus filmes. Mas não é o caso aqui. Pelo menos não inicialmente. Em suas primeiras cenas, William Cage surge como um militar que trabalha como assessoria de imprensa para a Força de Defesa e atua como uma celebridade televisiva, cujo principal objetivo é arrecadar mais soldados para o exército terrestre. Ele nunca esteve no campo de batalha, e morre de medo disso. Por se recusar a cumprir as ordens de seu superior, ele acaba sendo rebaixado e enviado para a batalha contra sua vontade. Por ser inexperiente, ele torna-se uma vítima fácil. É quando ele morre, e reinicia o dia. É quando ele precisa aprender a ser um soldado para sobreviver. Esse começo como homem covarde e indiferente é fascinante.
Assistir a um Tom Cruise que sorri como um covarde é até um pouco estranho. Não é o que estamos acostumados a ver — não é aquele sorrisinho cínico que sempre vemos em Missão Impossível. — Mas ele se vende muito bem dessa forma, e acrescenta bastante ao filme com seu medo de ir para o campo de batalha. Cruise merece muito crédito pelo crescimento e empatia de seu protagonista. Ainda que pouco a pouco ele se torne um herói de ação — ousado, destemido e calculista —, seu personagem não perde o aspecto relutante. Os motivos que o levam a ser relutante é que mudam. Ele consegue manter os méritos e as falhas de caráter de seu personagem em equilíbrio com as oscilações da trama — provocadas pelos retornos no tempo constantes. — A transformação de um homem petulante e mesquinho em um soldado valoroso é gradativa e convincente. Ele não é um herói, mas se torna um devido às circunstâncias. Sua única escolha é lutar e morrer.
Alguns elementos da cultura japonesa, inerentes à light novel, são mantidos no personagem, sutilmente misturados ao desenvolvimento de um herói de ação norte-americano. Esse equilíbrio favorece também a providencial interação entre Cage e sua parceira Rita Vrataski. Os dois têm uma química incrível.
Sobre Emily Blunt, ela é inteligente e guerreirona e espetacular. Quando você vir Vrataski pela primeira vez em cena, você vai sentir o que eu senti. Inspiração. O poder de liderança Vrataski é passado por Blunt apenas com o olhar e algumas expressões gestuais. Em combate, ela luta furiosamente, com uma espada imensa que ela maneja como se fosse um canivete. Por sua atitude agressiva é conhecida como Full Metal Bitch (Megera de Ferro). Mas por sua habilidade, é altamente condecorada e respeitada na Força de Defesa. Blunt consegue demonstrar graça e fúria ao mesmo tempo. A mulher é um fenômeno da natureza.
No Limite do Amanhã é sensacional. Em diversos aspectos. Como adaptação de All You Need is Kill, é impressionante e admirável. Como história de guerra, emula filmes antigos como Platoon e O Resgate do Soldado Ryan, criando uma atmosfera brutal de violência e insegurança nas trincheiras inimigas. Como filme de ficção científica e mecha — os militares usam exoesqueletos robóticos para enfrentar os aliens —, possui efeitos visuais bem executados e bem amarrados à proposta, repleto de cenas de ação emocionantes. As bestas alienígenas, com seus tentáculos transmutáveis e suas cartilagens fluorescentes, são grotescas e medonhas como se saídas de um pesadelo lovecraftiano. Graças ao protagonista covarde, que cresce pouco a pouco em seu heroísmo relutante, somos inseridos nesse medo do desconhecido. Passamos da antipatia à simpatia. Somos estimulados pela adrenalina constante da sobrevivência, da morte, da evolução e do reboot. Viver. Morrer. Repetir. Quando chegamos ao limite, estamos presos em um loop, torcendo de novo e de novo para que esse herói improvável encontre seu amanhã.
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