Colina Escarlate

Colina Escarlate

Colina Escarlate

Colina Escarlate (2015), Guillermo del Toro.

Um filme lindo, trágico e medonho, mas que não quer ser assustador. Começo assim porque há a tendência de se acreditar que uma história de horror precisa necessariamente assustar. Causar sustos. Nem sempre é o caso. No caso de um horror gótico, o susto pode ser a menor das intenções. É o caso desta nova obra de Guillermo del Toro. O filme tem sustos, é macabro e tenso, mas não é assustador. Isso é de propósito. Inclusive, é uma intenção que a protagonista de Mia Wasikowska, Edith, verbaliza com todas as palavras no início, quando submete um manuscrito a um editor: “Não é uma história de fantasmas, é uma história com fantasmas nela.” Mantenha isso em mente enquanto estiver assistindo. Não se trata meramente de um filme de casa mal-assombrada, embora também seja.

Como um romance gótico, Colina Escarlate é sobre a decadente aristocracia de mansões decrépitas, amores heroicos e traições amargas. Fantasmas mutilados surgem da escuridão macabra como advertências, em busca de sentimentos mais profundos do que simplesmente medo; não inspiram terror, embora alguns instiguem o terror. Os fantasmas, como nas clássicas histórias góticas, são causa e consequência de paixões dolorosas, mais trágicos do que vingativos, repletos de camadas que vão além do simples prazer de matar ou de provocar sustos tolos. O filme nos dá todas as dicas do que ele quer fazer o tempo todo, nem faz questão de ser subentendido. Quando em uma conversa, Edith, uma aspirante a autora, é comparada à Jane Austen e responde: “Eu prefiro ser Mary Shelley”, muita coisa fica às claras: as intenções, os caminhos, as interações, a história a ser contada. Em poucas linhas de diálogo, del Toro define sua atmosfera gótica que mistura a sensação rústica de um Penny Dreadful (as publicações baratas do século XIX sobre histórias fantásticas) com a profundidade emocional de Mary Shelley (obviamente) e Charlotte Brontë (Jane Eyre). Em muitos aspectos, remete à própria obra de del Toro, aos seus filmes de fantasia em língua espanhola, como Espinha do Diabo e Labirinto do Fauno. Para falar a verdade, Colina Escarlate é muito mais complexo do que um rótulo de gênero poderia indicar.

O filme fascina desde o início, com sua fotografia de época perturbadora, seu clima de mistério, e seus personagens alegremente soturnos; quando muda a trama para Allerdale Hall na segunda metade, somos completamente cativados. A casa dos irmãos Sharpe é cheia de detalhes góticos macabros; tão suntuosa quanto horripilante. A casa respira. Está viva. Em muitos aspectos, literalmente viva. Olhar, entender e transitar pelos corredores empoeirados de Allerdale Hall é uma experiência marcante por si só.

Os fantasmas são incríveis, benignos em essência, horripilantes em aparência, representações distorcidas da humanidade (não necessariamente moralidade) dos personagens vivos. Eles guardam os ferimentos de suas mortes, o sangue fluindo de buracos e rasgos na cabeça e no torso como água em um ambiente sem gravidade. Eles são como presságios, e como tal, raramente são elevados a personagens na trama; funcionam mais como parte do cenário. A maioria deles habita Allerdale Hall. Enquanto estiver assistindo, permita-se aproveitar cada detalhe dessa mansão elaborada nos detalhes mais ínfimos, com uma precisão quase fetichista, criada em cores tão vívidas e brilhantes que contrastam com o peso de desolação da história e dos personagens.

A trama, aliás, se desenrola com igual precisão, como um exercício de gênero, desenvolvendo um universo hipnótico de pesadelo que se entrelaça no texto de literatura vitoriana. As verdadeiras surpresas, contudo, não vêm da história, mas das emoções. Tom Hiddleston assumiu o papel de Thomas Sharpe, e não há como imaginar outra pessoa no personagem que não seja ele. Hiddleston constrói um aristocrata amável e caloroso, de um tipo que só poderíamos conceber em sonhos, situado perfeitamente entre o realismo emocional e a pura fantasia. Ao mesmo tempo, algo nele sempre parece errado, e quando descobrimos, é perturbador. Você se apaixona por ele, e se decepciona com ele, e em meio a um incessante conflito de emoções, está completamente envolvido na ambiguidade sinistra que ele tem a oferecer. No final, estamos até mesmo dispostos a perdoá-lo, não importa o que tenha feito.

Mia Wasikowska é um sopro de pureza nesse mundo que parece tão deturpado, uma mulher de beleza radiante e língua afiada, que desfila em vestidos brancos esvoaçantes quase como se fosse um fantasma fora de seu tempo. “Os fantasmas são uma metáfora para o passado”, ela diz em dado momento. Ela própria reflete essa ideia. Edith é um papel difícil, considerando a estrutura do filme, e mesmo assim, Wasikowska, talentosa como sempre, concede a ela vitalidade genuína. Queremos estar com ela em cada escolha que ela faz, em cada passo que ela dá enquanto explora os corredores escuros da mansão com um candelabro na mão, como se tivesse saído de uma história de fantasia vitoriana.

Charlie Hunnam ajuda a balancear a luz e a escuridão que cercam o caminho de Edith; ele sendo a luz que pode trazer à tona os segredos obscuros de Allerdale Hall. O interessante, porém, é que ele funciona como um herói íntegro que pode não ser tão útil como acredita que é. Edith não é apenas uma donzela em perigo, não deve ser, e o filme se recusa a mostrá-la como tal. Em contraponto, Jessica Chastain é a figura de escuridão que se esgueira através das cenas em um preto impecável, a expressão fria e aterrorizante, uma visão da atriz completamente diferente do que estamos acostumados. A cena em que ela alimenta uma Edith enfraquecida com mingau, raspando a colher de metal na tigela de cerâmica enquanto descreve calmamente atitudes agressivas do pai violento, é de arranhar o espírito de tão excepcional. Lucille Sharpe é uma personagem grandiosa, uma mulher que instiga apenas medo, e Chastain claramente aproveita a oportunidade de interpretar uma personagem verdadeiramente má. Ela é o reflexo de algo que os filmes de del Toro costumam abordar muito bem. Os vivos, em geral, são muito mais perigosos do que os mortos.

Os fantasmas se misturam à violência chocante que del Toro não tem medo de usar em suas obras (e um dos motivos pelos quais o considero um dos maiores diretores de fantasia da atualidade). Ele equilibra com delicadeza mórbida o sobrenatural, o horror da violência e a sexualidade. Assim como a brutalidade, o sexo desempenha um papel importante. Del Toro também consegue captar o complexo conflito de pudores e lascívia que a literatura vitoriana tanto explorava, como no momento que Edith e Thomas finalmente têm a primeira noite de amor, ela sobre ele, a saia enorme cobrindo tudo, ainda que o desejo entre ambos seja intenso e avassalador.

Colina Escarlate é um filme de sensações que pulsa com paixão quase obsessiva. Há a perseguição às influências icônicas de gênero, os dramas metafóricos, o semblante peculiar de blockbuster bombástico e de grande alcance. Del Toro cria uma experiência de literatura cinematográfica arrebatadora. O tempo todo parece que estamos lendo um livro na tela do cinema. Este é o del Toro arrasa-quarteirão flertando com o del Toro autoral em um romance diferente de qualquer outro. Os fantasmas de figuras como Mary Shelley, Lord Byron, Bram Stoker, Edgar Allan Poe acenam alegremente de onde quer que estejam para essa obra de arte que acena de volta para eles e muda preceitos que eles ajudaram a criar. Mas essa não é uma história de fantasmas, é uma história com fantasmas nela.