Aquarius (2016), Kleber Mendonça Filho.
A ascensão do mercado imobiliário brasileiro nos últimos anos foi feita sem planejamento urbano, atendendo muito mais aos investidores do que propriamente à população. Preços altos, aumento da densidade populacional de certas áreas, parte da população mais pobre tendo que ir morar em lugares mais afastados. Isso sem contar a ausência de política de transporte público para acompanhar essas mudanças. Estas foram algumas das consequências, que aos poucos vão mudando a vida nas cidades, e que não eram objetos de grandes reflexões fora do meio acadêmico. Curioso que é justamente deste cenário que sai o grande filme brasileiro Aquarius.
A história é sobre Clara (Barbara Colen e Sonia Braga), jornalista e escritora, especializada em música, que no passado teve que encarar um câncer e hoje é uma viúva que reside no prédio que intitula o filme. De frente para a praia de Boa Viagem, ela só quer passar seus últimos anos tranquila, fazendo o que gosta e em volta das memórias que cultiva. No entanto, ela é a última residente do prédio, uma vez que todas as outras unidades já foram vendidas para uma grande construtora, que pretende pô-lo abaixo e botar em seu lugar uma construção imponente e moderna, mas totalmente padronizada, sem ligações com a história do local.
Mas como diria Garrincha, faltou combinar com os russos. Clara não tem a menor pretensão de sair de lá. Ela vive de rendas, não precisa do dinheiro, mas é no Aquarius que ela construiu seu lar. À medida que o conflito avança, ela se torna uma resistente, por contrariar a lógica das relações sociais impostas pelo grande capital. Não se trata de luta de classes, pois a protagonista não é pobre. Ela apenas se recusa a seguir a cartilha de que tudo se traduz em termos financeiros, que tudo se resume a fazer dinheiro. Sua memória, sua história, sua paz, não há dinheiro suficiente que compre isso.
Um destaque especial deve ser feito à trilha sonora, que casa muito bem com o filme. É pela música que entramos nas emoções de Clara. Assim, ela consegue nossa simpatia. Os diálogos também são muito bons, naturais, mas bastante afiados. O elenco todo está bem, todos em sintonia, com o destaque, é claro, para a atuação deslumbrante de Sonia Braga. A personagem de Clara parece ter sido escrita especialmente para ela, que consegue transmitir toda a força da protagonista. Sem Sonia Braga, a obra não funcionaria de forma tão orgânica.
O curioso é que o filme se constrói em cima de dicotomias. Clara tem uma coleção imensa de LPs, mas não rejeita a música em formato digital. Contudo, para a jovem que a entrevista pro jornal local, isto passa batido, não é possível o meio-termo. Da mesma forma, o jovem empreendedor disposto a tudo para vencer não consegue compreender o apego de Clara por sua moradia. Ou a namorada de seu sobrinho que vem do Rio e descobre que a praia dos ricos e a praia dos pobres possui como divisória o esgoto não tratado que percorre a areia e deságua no mar. Podemos lembrar ainda dos próprios filhos de Clara, que não entendem o motivo da mãe não querer se mudar.
E dessas divisões e contradições vão surgindo as (im)possibilidades comunicativas. Quando há espaço para o amor, tudo é perdoado. Entretanto, quando se traduzem em dinheiro, o conflito é inevitável. E o sistema financeiro joga sujo, querendo, por bem ou por mal, forçar a imposição de sua lógica. Para ele não há outro lado, ou você se junta ou ele vai tentar te destruir.
É nisto que resulta o aspecto político do filme. Em primeiro plano, temos um belo estudo de personagem, mas no pano de fundo há a vontade de resistir, de gritar que outra visão é possível. Não se trata de rejeitar o dinheiro, mas de impedi-lo de comandar a vida em todos os seus aspectos. Neste sentido, Clara é a grande representante de quem não simplesmente aceita como inevitável essa lógica que, sob a aparência de democrática (poder de escolha), na verdade usa tanto a sedução como a força para impor uma verdade única e que não pode ser questionada. A saída está na arte, no amor, na memória afetiva e na preservação da História. Cada um é que sabe o que lhe faz ser feliz. E nenhum preço é suficiente para nos fazer abrir mão de quem somos.
Redes Sociais