Brasil, futuro do pretérito

O Brasil saiu do século XIX, mas o século XIX parece não querer sair do Brasil. A classe dominante ainda é saudosa dos tempos em tinha a chibata nas mãos. Provinciana, brega, valorizar o dinheiro, mas não o trabalho. Imita o que julga ser a moda dos países mais ricos, sem realmente entender a cultura, enquanto despreza sua própria. Esta parece ser a mentalidade de quem comanda os rumos de nosso país.

O escritor Stefan Zweig afirmou que o Brasil era o país do futuro. Sofrendo de depressão, ele acabou se suicidando em 1942. Sua profecia, infelizmente, parece até hoje não ter se cumprido. Sempre que o país ameaça alguma evolução, algo acontece e acaba dando passos para trás. Esse eterno porvir acabou virando o futuro do pretérito, algo sempre em potencial que nunca se realiza.

Apesar de você

Recentemente causou polêmica a escolha do filme brasileiro para disputar a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Aquarius seria a escolha óbvia, dado o sucesso de público e crítica e boa repercussão internacional após a exibição no Festival de Cannes. No entanto, produção e elenco aproveitaram o tapete vermelho do festival para protestar contra a deposição da ex-presidente Dilma, na época ainda não consolidada. Exercício da liberdade de expressão, certo? Não para o novo governo, que preferiu, sem assumir posição explícita, por não o selecionar para o prêmio dos EUA.

O curioso é que faz tempo que não há um filme nacional tão empolgante e belo. Ainda assim, o critério político prevaleceu sobre o estético. E a obra fala de resistência, o que, tudo somado, acabou dando mais força ao filme.

Mosca na sopa

Ainda há no país uma visão de que a cultura é uma bobagem. Algo que os filhos dos ricos podem fazer para não ter que trabalhar de verdade. Ou então é coisa de marginal, de gente que só quer “mamar nas tetas” do governo. É quase uma criminalização de quem produz cultura.

Essa mentalidade sobrevive graças ao desastre que é nosso sistema educacional. Não há a preocupação de formar cidadão, apenas preparar mão de obra barata, para a classe pobre, e possibilitar o acesso às universidades, para as classes média e rica. A escola prepara os alunos para passar no Enem, para entrar na universidade, para ter um diploma, para exercer uma profissão. E quanto aos pobres, para quê investir, se dali só sairão trabalhadores braçais?

Literatura é coisa supérflua, para se divertir nas horas vagas – isso para quem consegue atravessar o ensino médio conseguindo ler por prazer. – Para a maioria, leitura é obrigação, ou para adquirir um conhecimento “útil”. No máximo, a leitura da Bíblia, autoajuda ou empreendedorismo (que no fundo se misturam e viram uma coisa só).

O problema é que, como disse Oscar Wilde, toda arte é completamente inútil. O prazer estético não pode caber numa linha industrial. Ele vem da quebra de expectativas, que muitas vezes perpassa por críticas sociais profundas. Ou ao menos, faz o público pensar. E para quem manda no país, o povo pensar é algo perigoso.

Todos os olhos

Desde a fetichização do período do Brasil Império até o elogio de torturadores do regime militar, o Brasil tem um longo histórico de truculência e regimes de exceção. Há até quem diga que “no Império, o Brasil era primeiro mundo”, “D. Pedro II era um governante culto e elegante”. Para uma minoria, talvez. Mas a maioria de nossa população era escrava, ou descendentes de escravos, e isso parece ser sistematicamente ignorado nessa visão idílica de nosso passado.

O terrorismo de estado praticado pela ditadura militar saiu impune, e ainda hoje é tabu discuti-lo. O Judiciário chancelou a autoanistia concedida pelo regime no apagar das luzes, e ficou por isso mesmo. O resultado sentimos ainda hoje, como em episódios como o massacre de Carandiru, que continua impune. A Justiça é dura com o ladrão de salame, mas extremamente compreensiva com violações sistemáticas dos direitos humanos.

E assim persiste a tortura nas delegacias, as condições sub-humanas de nossos presídios, o estado policial que ainda vigora nas favelas. Isso para não falar do ódio aos negros, às feministas, aos homossexuais e a qualquer outra minoria que ouse levantar a voz por seus direitos.

Pra não dizer que não falei das flores

A cultura, para ser relevante, tem que ser do contra. Contracultura. Tem que mexer com nossos brios, nos fazer questionar o mundo em que vivemos, o que pensamos e sentimos. Isso resulta em mudança, em evolução de uma sociedade. O ranço autoritário que persiste no Brasil impede que isso aconteça plenamente. As classes altas não querem direitos, querem privilégios. Questionar é perigoso, pois pode romper a estrutura social que possibilita esses privilégios existirem.

Mais fácil copiar o que vem de fora. Mas aí está o grande drama. Sem educação, sem a mente aberta, sem compreender o próprio povo e a própria cultura, não há como absorver corretamente o estrangeiro. Daí vem a cópia tosca, sem vida, que passa ridículo.

Por outro lado, tem que haver a coragem de quem produz cultura de querer romper com essa mentalidade. As Leis Rouanet e do audiovisual poderiam ser criticadas justamente por tornar difícil esse rompimento, já que eram os patrocinadores que escolhiam o que financiar ou não, e temas polêmicos teriam mais chances de ficar de fora. Contudo, a crítica é justamente o contrário, feita de uma forma ignorante, sem a menor relação com a realidade. E ignora toda a nossa produção cultural, o que para eles, é indiferente, pois bom mesmo é o que vem de fora.

Alegria, alegria

Não se pode ser contra e achar que todos vão te receber de braços abertos. As pedradas devem ser esperadas. No Brasil, a pedra pode se transformar num fuzil apontado para sua cara.

Ainda assim, a resistência é possível. Se quem produz ou consome cultura vai ser marginalizado, que use isso a seu favor. É quando ninguém está olhando que podemos ficar mais à vontade para fazer o que quisermos. Se eventualmente algo chamar atenção, é encarar de frente e firmar posição. Só assim o Brasil vai mudar. E se quiserem nos atacar com cupins, vamos capturá-los e levá-los de volta para quem nos atacou. Pois quem tem motivos para ficar realmente constrangido, são eles. Se eles insistem com a chibata, nos tornemos todos João Cândido.