Nas aventuras de super-heróis, a manutenção do status quo costuma ser essencial, pois se os supers usassem seus poderes para fazerem mudanças efetivas no mundo, este rapidamente se tornaria algo bem distante de nossa realidade, o que alienaria seu público. Alan Moore brinca com este conceito em obras como Watchmen e Miraclemen, mas quando falamos de obras mais comerciais como as dos universos Marvel e DC, por mais que se tente mudanças, no final do dia, tudo volta a ser como era antes. Dificilmente se consegue fugir disto, mas o filme do Pantera Negra parece ser uma exceção.
Nesse contexto, de forma consciente ou não, muitas vezes os vilões adotam os discursos revolucionários, rebeldes e questionadores que o herói não pode fazer. O problema é que, a depender da direção, as visões que fogem do padrão aparecem distorcidas, muitas vezes soando mais como propaganda dos poderes constituídos.
Na trilogia do Batman de Christopher Nolan, os vilões são todos representantes de pensamentos que não aceitam as coisas em seu estado atual. O que leva a crer, inclusive, que suas escolhas foram deliberadas pelo diretor para reforçar que a vitória do status quo é essencial, porque as alternativas são piores. Ra’s Al Ghul simboliza a luta ecológica e pelo reconhecimento do aquecimento global. O Coringa, por sua vez, é o anarquismo. E por fim, temos o Bane, com seu discurso que lembra o movimento Occupy Wall Street a acusar o poder financeiro de ser o responsável pelos sofrimentos do povo.
Estes são alguns exemplos dentre muitos. Podemos ver algo parecido também em Homem-Aranha: De Volta ao Lar, no qual o Abutre entra para a vida do crime depois de ser prejudicado pelas empresas de Tony Stark, o milionário filantropo que fez fortuna vendendo armas para o governo americano e, mesmo tendo abandonado tal comércio, continua usando seus contatos para influenciar na política e manter seus negócios.
A questão aqui não é demonizar os heróis, mas apenas mostrar que, no final de cada aventura, os discursos divergentes não são absorvidos, mas excluídos ou estereotipados, e as críticas que trazem são ignoradas. É neste ponto que o filme do Pantera Negra diverge dos demais, e talvez esta seja a sua grande força.
A partir daqui, teremos spoilers do filme Pantera Negra, então, leia por sua conta e risco.
Inicialmente, como apontou Slavoj Žižek em artigo recente, o herói Pantera Negra (interpretado por Chadwick Boseman) parece simbolizar uma diluição do movimento dos Panteras Negras no qual foi inspirado. Embora ambos sem dúvidas tenham como grande força a questão da igualdade e representatividade da população negra, no partido político havia uma inspiração revolucionária, inspiradas em ideais socialistas, que simplesmente são ignorados nas aventuras do herói. No filme, curiosamente, o discurso da revolução aparece não no protagonista, mas no grande vilão do filme, Killmonger (interpretado por Michael B. Jordan). E assim como Bane, o discurso vilanizado parece agradar ao establishment da sociedade dos EUA, onde o revolucionário é um ditador assassino que busca se estabelecer no poder.
Mas parar aqui seria uma leitura rasa do filme. Killmonger está longe de ser o vilão tradicional de histórias de super-heróis. Ele é desde o início humanizado, longe da caricatura habitual. Além disso, o seu sofrimento é todo embasado nos problemas sociais que são bem comuns para a grande maioria dos negros.
A questão principal, contudo, é que o filme mostra que o vilão é quem tinha razão. T’Challa, como rei, mostra-se relutante em realizar mudanças, mas a presença de Killmonger torna impossível ignorar seus questionamentos, pois são problemas que o próprio T’Challa gostaria de solucionar. Preso ao trono, não conseguiria tomar o impulso necessário para tirar o reino de Wakanda de seu isolacionismo histórico. Foi preciso que o Rei morresse e renascesse para que Wakanda pudesse também renascer e simbolizar a possibilidade de uma outra África, onde sua população possa viver com dignidade e aproveitando todo o seu potencial para a evolução da humanidade.
Talvez se possa enxergar o filme Pantera Negra seja uma obra reformista, no sentido de que mantém inalterado o status quo. Excluída a ameaça da revolução, o mundo capitalista ainda pode oferecer algum conforto aos pobres e excluídos. O discurso rebelde seria apenas um pretexto para que ditadores ocupem o poder. Afinal, estamos falando de uma obra produzida pela Disney, um dos grandes bastiões do capitalismo.
Contudo, uma outra leitura pode ser mais interessante. Ao mostrar uma África pujante, com desenvolvimento tecnológico avançado, onde os negros são todos tratados de forma digna, e as mulheres ocupam um papel de igualdade real na sociedade, e mostrando ainda essa África se abrindo ao mundo e oferecendo uma mudança possível e necessária, sendo contrária à exclusão dos imigrantes e à favor da demolição de barreiras entre os povos, o diretor Ryan Coogler se utiliza de todos os meios que chegam às suas mãos para mostrar sua visão de que um outro mundo é possível. Afinal, lembrando-nos do filme A Chinesa de Godard, você não pode fazer a revolução pelo povo, mas é o povo que deve fazer sua própria revolução. E de que maneira poderia ser melhor instigar um movimento revolucionário do que colocando no imaginário popular que a mudança é possível de ser realizada?
Redes Sociais