No coração, onde dói

Coração

Tenho tido dias de releituras. Com a devida retirada de chapéu, pedidos de licença e sorriso sem graça, digo até que estou em dias de escrevivências, termo criado por Conceição Evaristo, uma das grandes escritoras brasileiras vivas destes tempos que correm.

É bem provável que, vistos pelo microscópio acadêmico, minhas narrativas não possam se refugiar sob o mesmo guarda-chuva que as de Conceição. Eu mesmo, por muito tempo, disse que o que fazia era transrealismo, algo muito mais próximo das maluquices a que me proponho quando quero contar histórias sem muita disposição de facilitar a vida do leitor no processo. Hoje em dia, talvez por arrogância ou grande inocência, pego para mim um termo todo meu, inédito na academia, o pós-regionalismo, que também pode vir a se tornar transregionalismo, dependendo da disponibilidade do termo e das minhas capacidades de fazer isso valer.

O que importa nisso tudo é: não tenho saído muito de casa, exceto para fazer uma ou outra visita a poucos amigos, sempre aqui mesmo no cantinho de mundo que chamo de meu: Macuco. Se vocês moram no Rio e consomem laticínios, é bem provável que já tenha se deparado com o leite ou a manteiga que trazem o nome do município. Se não, é bom que vocês não estejam esperando por um guia turístico. Embora boa parte das minhas histórias se passe em Macuco, a verdade é que a cidade é um lugar comum e sem grandes atrativos à primeira vista. É nos detalhes que reside a beleza. E os grandes horrores.

Dessas releituras recentes, destacam-se o Ulisses, do James Joyce, e Bleeding Edge, do Thomas Pynchon. Curiosamente, nas duas obras temos protagonistas que andam pela cidade de um lado para o outro às vésperas de uma grande guerra, enquanto Leopold Bloom e Stephen Dedalus caminham por uma Dublin do começo do séc. XX, experimentando desejos, amarguras, cores, cheiros e tudo o mais que possam garantir, ao menos para um dia de um homem comum, um encontro com o Total, Maxine Tarnow, uma investigadora particular de fraudes financeiras, percorre a Nova York dos primeiros meses do séc. XXI, antes, durante e depois dos atentados de 11 de setembro (o de 2001, não aquele de 1973, quando os Estados Unidos colaboraram no golpe militar chileno, que culminou na morte do presidente Salvador Allende, desse atentado as pessoas não costumam lembrar muito). À diferença de Bloom e Dedalus, que flertam com o Total e voltam para as suas vidas, Maxine flerta e se entrega à entropia, reconhecendo logo a seguir a necessidade de sair do vazio e voltar, com todas as cicatrizes, para a vida de todos os dias e quem permanece nela.

Diferente da Oedipa Maas, protagonista de O Leilão do Lote 49, também de Pynchon, Maxine não encara uma grande viagem de descoberta, ela até mesmo tenta se afastar dessa jornada, dividindo as dores da missão com os sorrisos de segurança que só uma mãe pode dar para que o mundo não desabe como… bem, como as torres.

Como Pynchon não é o sujeito mais sociável do mundo (perdendo para um ou dois amigos meus, talvez), fica difícil saber o quanto essa relação familiar exposta em Bleeding Edge tem da sua própria vida de pai temporão, chefe de família e velhinho maconheiro novaiorquino. Nos restam as conjecturas, na qual eu posso arriscar que um dos papas da pós-modernidade flertou muito bonito com o cyberpunk. Aliás, levando em conta que Vício Inerente, seu livro anterior, também exibia os primeiros passos da internet e confundia a navegação com algum tipo de experiência extrassensorial de uma viagem de ácido, dá pra dizer que esse flerte já virou namoro.

Mas esse texto não é exatamente para falar sobre meu gosto literário, ou sobre o que eu venho produzindo. Acho que esse texto é sobre amizade. E, também, sobre a saudade. Ontem passei o dia com alguns dos meus amigos mais queridos. No final da noite, já estávamos todos virados, arrebentados, velhos, tossindo, espirrando, inchados, prontos pra uma caganeira ululante (lidem aí com essa imagem), mas rindo pra porra, também. E juntos.

Nesse momento, se me perguntarem como eu lidaria com a perda de algum desses caras, acho que eu não saberia responder, embora tenhamos planos muito malucos do que fazer uns pelos outros no caso de nosso falecimento. Quase tudo é ideia torta, que dá cadeia. Mas nenhuma delas diz menos sobre a nossa amizade.

Todas estas linhas têm algo da impossibilidade (como quase tudo que escrevo), de não ser capaz de dizer de verdade o quanto as coisas nos representam, o quanto nos dói perceber a partida de guerreiros que lutam as mesmas lutas que a gente. Na última quinta-feira, os quadrinhos nacionais perderam mais um guerreiro.

João Carpalhau se foi. Suas divertidas postagens, seu jeito seguro, de quem não precisava seguir as regras de um mercado ainda sem muitas regras. Recusava-se, por exemplo, a pagar por uma mesa num evento de quadrinhos, para isto, criou a Gibizeira, por isso, ficou do lado de fora durante o último FIQ – não por não ser convidado, mas por querer experimentar algo diferente, menos rigoroso, alternativo e independente. Aos 38 anos, no auge de uma carreira criativa que não apenas o engrandecia, mas fortaleceu a produção de toda uma turma, o criador da Capa Comics, do Detrito e do Não Tão Super, da Gibiteca de Caxias, da Gibizeira, pai, marido, filho, amigo querido de muitos, o Carpa se foi.

Não nos conhecíamos pessoalmente, mas trocamos algumas mensagens nesses anos de criação. Cheguei a ensaiar uma participação na Capa, apresentando uma ou outra ideia, que acabou não indo pra frente, coisa com a qual nos acostumamos com o tempo. Ser criativo é, talvez na mais inocente definição do termo, saber lidar com as mudanças que aparecem. Nossas histórias mudam o tempo todo, assim como a nossa vida. Pessoas criativas vão à luta, se adaptam e, num processo mais longo e, definitivamente mais caro, também acabam adaptando o mundo.

Carpalhau se foi, mas antes provou que existe todo uma fervilhante cena dos quadrinhos vinda da periferia, dos buecos, ruelas e rios de vida imprecisa, que mais parecem valas fétidas, de onde um monstro de cocô pode surgir a partir do cadáver de um professor de História, vítima da violência urbana. Sua partida, tão próxima a do Carlos Patati, outro mestre quadrinhista fluminense, deixa um pouco órfãos toda uma classe de gente que, a exemplo deles, deve continuar criando, honrando suas memórias, sentindo a sua falta e fazendo brindes com copos irreparavelmente ausentes.

Como de costume, essa é uma coluna assimétrica de temas assimétricos. Encerro-a desta vez com um trecho inédito do livro que estou escrevendo. Um trecho, vejam só, sobre a amizade:

Tora se lembrou da primeira vez que visitou Gustavo.

– Lava a louça aí. – Gustavo disse logo que entraram na cozinha, apontando pra pilha acumulada na pia. – Só a sua, só, pra gente poder comer um bolo. E não me olha torto assim, não, que nem é machismo, você vai lavar só o que vai usar, só.

Não tão contrariada quanto Gustavo esperava que ela ficasse, Tora foi lá e lavou prato, garfo e copo. Tomaram Nescau e comeram bolo. – E eu tenho que lavar de novo, agora? Porque, né? jJá tava sujo coisetal?

Gustavo sorriu, levantando-se: – Você desculpa meus modos, Tora. Meu pai não é a melhor pessoa do mundo, mas me ensinou uma ou outra coisa. Pra começo de conversa, no mínimo, você tem que lavar a louça que vai usar sem reclamar.

Tora levantou-se, já em direção à pia, onde começou a lavar o prato.

Gustavo continuou: – E outra coisa que eu aprendi com ele é que se a pessoa lavou o que usou, já percebeu a situação da casa e aceitou isso. Bom sinal. Quem percebe que a vida dos outros é caótica e não chega pra atrapalhar, de cara, já é boa pessoa.

– E se a pessoa não quer lavar o copo, ela é ruim?

– Ah, não é bem assim. A pessoa pode não estar com fome. Ou pode tá doida pra ir embora correndo.

– Eu não tô correndo.

– E tá lavando a louça de novo depois de usar. Segundo meu pai, isso também indica que a pessoa é bem-vinda pra voltar quando quiser.

– Que bom. – Ela termina de lavar o copo, seca as mãos num pano de prato encardido e sorri para o amigo. – E os meninos?

– O que tem eles?

– Ué, quando eles vem aqui, lavam a louça?

– Tá brincando, Tora? Eles morrem de medo do meu pai. Nunca vieram aqui.

(Foto que ilustra o post retirada do Facebook do Cadorno Teles)