Realidade, uma fake news

Realidade

Vivemos em tempos estranhos. Olhamos em volta, lemos as notícias e algo fica cutucando nosso inconsciente, como um aviso de que há algo errado. Poderia até ser um chamado para a Iluminação, mas isso implicaria em abrir mão de nossas certezas.

A realidade consensual tem como pressuposto a existência de um nível de concordância mínimo sobre o que é ou não verdade. Os programadores da Matrix levaram isso em conta ao construir o sistema, sem imaginar que essa tendência a concordância em pouco tempo começaria a tomar o sentido oposto.

É por isso que a cada evento que gera mobilização midiática, como o incêndio em um museu, a morte de uma vereadora ou um atentado à vida de um candidato a Presidência da República, antes mesmos dos fatos serem esclarecidos, surge uma guerra pelo domínio da narrativa sobre o acontecimento, com cada lado criando versões, teorias da conspiração ou mesmo fake news para assegurar a quem pensa igual que não precisará questionar suas crenças, pois essas já são de antemão reafirmadas. Assim, quando os fatos são divulgados, eles já não interessam mais, pois cada grupo já está se armando com argumentos para assegurar que a sua verdade é a verdadeira.

O que estamos experimentando é uma reengenharia do sistema. A partir do momento em que as falhas da Matrix começam a ficar gritantes, o programa vai sendo reformatado para impedir que descubramos a existência de Zion. Desta forma, a realidade convencional vai sendo aos poucos abandonada para que cada um possa ter sua própria microrrealidade, construída ao gosto do freguês.

É assim que o ódio vai tomando conta. Admitir o outro é negar a si próprio, uma vez que sua realidade vai se tornando cada vez mais contrária à do próximo. A violência é mais do que para calar o próximo, ela visa calar a dúvida que cada um sente dentro de si mesmo. Ouvir o outro é amplificar aquele cutucão no inconsciente que não queremos responder. E nosso ego vai resistir de todas as formas para não ter que admitir que as coisas podem não ser como as vemos.

Toda essa situação é produzida para beneficiar alguém, pois todas as narrativas visam, em última instância, reforçar as relações de poder que existem em nossa sociedade. Grupos políticos em oposição visam, mais do que convencer, reforçar em sua base a lealdade à ordem a qual se filiaram. Enquanto seus seguidores se digladiam, muitas vezes até mesmo contra bots, o 1% mais rico vai aumentando sua concentração de renda e poder praticamente sem ser incomodado. Talvez o mais saudável fosse aceitar que toda notícia é fake news, e toda narrativa a qual nos filiamos visa muito mais a nos assegurar de que somos mais espertos e mais sábios do que o lado contrário, e por isso mesmo devemos ter cautela antes de embarcar em qualquer lógica que soe perfeita demais.

Do contrário, cada vez mais nos apegaremos aos algoritmos da Matrix, enquanto a lição de que “there is no spoon” vai ficando a cada dia mais esquecida.

Para Malprg.