Sendero Luminoso: História de uma Guerra Suja (2009), Jesús Cossio, Luis Rossell e Alfredo Villar.
Quando estive de férias no Peru, em 2015, visitei uma livraria em Lima e, logicamente, fui procurar a sessão de quadrinhos para tentar conhecer algo da produção local. A obra que me chamou a atenção foi Barbarie, de Jesús Cossio, que fazia jornalismo em quadrinhos para contar a história sangrenta do combate entre as forças armadas peruanas e o grupo Sendero Luminoso, que resultou em 70 mil mortos depois de quase duas décadas de luta, e sobre a qual nós brasileiros não temos a menor ideia do que realmente ocorreu. Achei que nunca encontraria este material por aqui, mas felizmente estava errado. Fiquei positivamente surpreendido quando descobri que Barbarie, junto com outro livro chamado Rupay (este de Cossio em coautoria com Alfredo Villar e Luis Rossel), estava sendo publicado no Brasil pela Editora Veneta no livro Sendero Luminoso: História de uma Guerra Suja.
O Sendero Luminoso foi uma guerrilha de inspiração maoísta formada no final dos anos 1960, quanto nosso vizinho vivia sob uma ditadura militar, que surgiu na região de Ayacucho, no Peru andino, uma das regiões mais pobres do país. A princípio fruto da mobilização estudantil, nos anos 1980, resolveram ingressar na luta armada, com base nas lições e ordens de seu ideólogo e comandante Abimael Guzmán, conhecido por seus seguidores como Camarada Gonzalo. De seu esconderijo em Lima, mesmo sem pegar em armas, ele conseguiu comandar uma organização clandestina que levou o país a uma situação de verdadeira guerra civil. O mais impressionante é que conseguiu isto sem ajuda externa, uma vez que classificava os governos da China e da União Soviética como revisionistas.
Por se tratar de uma região pobre e afastada do grande centro, a resposta das forças armadas peruanas foi brutal, sob a indiferença das classes alta e média de Lima. Havia ainda um componente racista nesta atuação, uma vez que os guerrilheiros eram confundidos com a população de origem indígena da região, principalmente os falantes da língua quéchua. Desta forma, qualquer um com esta origem era chamado de “terruco”, um termo com conotação pejorativa em relação aos povos indígenas. O próprio comandante das forças armadas falava abertamente em cometer massacres com a morte de inocentes, pois só assim conseguiriam capturar os combatentes, o que fez com que, a princípio, os senderistas tivessem algum apoio popular. Além dos assassinatos, a HQ mostra ainda de todo tipo de violência, como a prática cotidiana de estupros coletivos por parte dos militares, além de torturas e prisões arbitrárias.
Com o aumento da repressão, os membros do Sendero também se tornaram cada vez mais agressivos, praticando justiçamentos em praça pública. Matavam de forma cruel quem julgasse estar traindo a guerra popular. Assim, os camponeses da região se viam sob o fogo cruzado, sendo vítimas ora de um lado, ora de outro. Tanto as forças armadas como a guerrilha, que diziam lutar pelo povo, não hesitavam na hora de cometer violências e mortes das mais brutais contra este mesmo povo que juravam defender.
Os quadrinhos conseguem retratar muito bem a realidade deste combate, tudo com base nos relatórios da Comissão da Verdade que se instalou no país em 2001, numa importante tentativa de se preservar a memória das vítimas e buscar a punição de vários episódios de violação de direitos humanos ocorridos no período de luta.
A arte em preto e branco em alguns momentos remete ao trabalho de Joe Sacco, talvez o nome mais famoso do jornalismo em quadrinhos. No entanto, os artistas mostram personalidade própria, principalmente na forma “crua” com que mostram a violência. A única cor que aparece na HQ é o vermelho, ressaltado no sangue das vítimas e nas bandeiras do Peru e da guerrilha comunista. Além disso, conseguem algo difícil neste tema espinhoso, que é mostrar neutralidade em relação aos lados combatentes. O lado dos autores, porém, fica claro: é o das vítimas e de seus familiares, que sofreram os horrores perpetrados por pessoas que diziam lutar em seu nome.
O roteiro não busca contar a história completa, mas se foca em episódios específicos de violência que não obtiveram solução satisfatória pela justiça local (em muitos casos sequer houve punição aos criminosos). Também não conta como se encerrou a guerra, com a captura dos líderes senderistas nos anos 1990 durante a ditadura de Fujimori, que buscou se perpetuar no poder mesmo depois destas prisões, sob o vago discurso de combate ao terrorismo (que na verdade encobria a própria corrupção dentro do governo).
A introdução da edição brasileira, assinada pelo editor Rogerio de Campos, ajuda a situar o leitor quanto ao contexto político da época, mostrando o ambiente que levou ao florescimento do Sendero Luminoso e de como estudantes universitários fizeram a opção pela luta armada.
Em um momento no qual a política nacional e mundial estão cada vez mais direcionando-se a extremismos, esta história em quadrinhos serve como alerta de até onde a violência política pode ir, sendo a população civil sua principal vítima. Além disso, arrisco dizer que é uma das melhores reportagens em quadrinhos já feitas, tratando com precisão de um tema tão delicado e importante, à qual é impossível o leitor permanecer indiferente. O jornalismo em quadrinhos ainda é pouco explorado, e HQs como esta mostram todo o potencial que o gênero pode alcançar.
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