Doctor Who: A Décima Terceira Doctor

Doctor Who Jodie Whittaker

Doctor Who Jodie Whittaker

Doctor Who Jodie Whittaker

Doctor Who (2018), Chris Chibnall.

Demorou a acontecer, mas uma hora aconteceria. Desde que o Mestre apareceu regenerado em Missy, aumentou as expectativas de que o Doctor finalmente regeneraria como uma mulher. Os Timelords não encaram questões de gênero como os humanos (apesar do “Lord” no nome, como Bill Potts já apontou brilhantemente) e nem deveriam: afinal, a ficção científica é provavelmente o gênero mais fluido da cultura pop. A própria Bill mandou o papo para o Doctor na temporada passada: “Sabe como gosto de mulheres e pessoas da minha idade. Fico feliz que saiba disso!” Um pequeno gancho para o que estava por vir. O Décimo Segundo Doctor, como o Doutor dos discursos inflamados, encerra seu ciclo (obviamente) com um discurso inflamado para que sua próxima versão se lembre de como deve ser e do que é importante. E ele finaliza com as palavras: “Ria muito. Corra rápido. Seja gentil.” Como toda regeneração, foi emocionante. Paixão pura. Chorei com a despedida de Peter Capaldi.

O grande poder de Doctor Who é sua capacidade de emocionar e te fazer se apaixonar por seus personagens e suas jornadas a cada episódio. RARÍSSIMAS séries podem se orgulhar disso. Jodie Whittaker apaixona nos primeiros minutos. Apesar da Décima Terceira Doctor levar um tempo se acostumando à nova forma, Whittaker leva poucos minutos do primeiro episódio pra mostrar que está confortável no papel, que entende a beleza de ser Doctor e o que faz a série ser tão apaixonante e emocional. É a MELHOR Doctor desde David Tennant! E o mais curioso é que, em certos momentos, ela de fato lembra bastante o Doctor de Tennant, inclusive nos trejeitos e, especialmente, nas caras que faz quando está confusa ou surpresa ~porra, é muito igual! Hahaha Na verdade, Jodie Whittaker incorpora pequenos traços e elementos de vários dos Doctors anteriores. O que faz sentido, visto que sua regeneração veio logo depois de um fantástico e providencial encontro com o PRIMEIRO Doctor!

Ela se lembra bastante de seu passado e de seus encontros passados, o que se reflete na forma como vai construindo sua aparência e nas referências que a própria série faz às séries anteriores: quando ela se lembra da vespa da Agatha Christie, ou quando recebe de presente o chapeuzinho fez do Doctor de Matt Smith ou quando usa o cachecol… ah, o cachecol, foi rápido, mas foi lindo!

Ela também é absurdamente apegada à sua sonic screwdriver, primeiro porque ela própria a constrói (há um valor nisso), segundo porque a screwdriver tem um display onde ela pode ler as informações sobre as coisas que analisa (e ela analisa bastante), terceiro porque a Doctor a usa PARA TUDO! Isso é lindo! Foi uma das coisas que mais gostei dessa Doctor. A sonic screwdriver não vinha sendo tão usada nas últimas temporadas e é bom vê-la ganhar destaque de novo. Faz parte da essência do que é Doctor Who.

Por ser a que mais se lembra do passado, a Doctor de Jodie Whittaker é também a mais empática e gentil de todas as versões do Doctor. Quando aprendemos com o passado nos tornamos pessoas melhores ~essa é uma das mensagens por trás da 11ª temporada. Por causa disso, também é a temporada que mais viaja pelo passado da Terra e por seus momentos históricos mais tristes: o protesto de Rosa Parks, a Partição da Índia, a caça às bruxas do século XVII. Momentos mais horríveis e cruéis da História são trazidos para a série em episódios emocionantes, arrebatadores, que nos lembram que a humanidade está sempre passando por tempos sombrios, quando o medo toma conta e a violência parece ser o caminho mais fácil para resolver os problemas. A Doctor mostra que o importante de verdade é como as pessoas são capazes de manter viva a esperança se forem gentis e corajosas. Mais do que nunca, a série reforça que ela é uma DOUTORA disposta a curar as feridas do Universo.

Não é à toa que a 11ª temporada também é a mais diversa. A começar pelos novos companions, todos cativantes! Ela viaja com o jovem ex-trabalhador de armazém Ryan Sinclair, o motorista de ônibus aposentado Graham O’Brien e a policial Yasmin Khan. A dinâmica entre os três e a Doctor faz valer cada episódio. Eles se conhecem em meio ao ataque de um alienígena da raça Stenza, justo quando a Doctor regenera e cai da TARDIS. Passam por um momento trágico, começam a viajar pelo tempo e espaço, rapidamente se tornam um grupo e, logo, uma família. É bonito de ver o crescimento de cada um, inclusive da própria Doctor. Ryan é negro e Graham era casado fazia três anos com Grace, a avó de Ryan, também negra. Ryan tem uma doença que afeta seus movimentos e Graham sempre está tentando ajudá-lo e fazer com que seu neto postiço o chame de “avô”. Ryan é bastante relutante com a relação, mas aos poucos, eles vão evoluindo nessa dinâmica neto-avô e é emocionante ver os dois juntos. E Graham é um cara muito legal, do tipo que você realmente gostaria de ter como avô. Yaz é paquistanesa e age como uma voz de equilíbrio no grupo, talvez por ser policial, talvez por ser a filha mais velha de uma família cuja história da saída do Paquistão e ida para o Reino Unido foi bem difícil. Um dos episódios mais impactantes (emocionalmente falando) é quando Yaz viaja para a época do casamento da avó e descobre que eles estão no meio da Partição da Índia, um fato que marcou a História com uma violência terrível. O episódio é marcante pelo histórico e pelo desenrolar dos fatos.

Aliás, a Doctor está em seu melhor justamente quando se envolve nos eventos importantes para a História do planeta: os famosos pontos fixos no tempo! É maravilhoso o episódio em que conhecem Rosa Parks, em 1955, quando ela se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um branco por causa da lei que separava lugares para brancos e lugares para negros no transporte público. Parks iniciou uma série de boicotes aos ônibus e protestos que envolveram até mesmo Martin Luther King. E o time da Doctor participa ativamente da História. Ryan precisa lidar com isso, e aprende bastante nesta história, e nós aprendemos junto com ele. Se há uma coisa que essa temporada faz com louvor é agregar valores e conhecimento. Ela te faz pensar com seus episódios, o tempo todo, de uma maneira muito sincera e apaixonante. Eu mesmo não conhecia a história da Partição da Índia e fui ler sobre o assunto por causa do episódio de Yaz e é impressionante como aquela história da década de 1940 é tão similar, tão dolorosamente parecida, com muita coisa que estamos vendo no mundo de hoje em pleno ano de 2019. É triste pensar que a História vive se repetindo, que poucos aprendem com o que o passado tem a contar.

Mas esta é a magia da Doctor que Jodie Whittaker abraçou com tanta paixão. Ela é uma aventureira alegre e iluminada em meio a toda essa desolação, apaixonada por construir coisas ao invés de destruí-las, que valoriza os amigos e luta buscando soluções não violentas para os conflitos (mesmo quando a violência parece ser o único e melhor caminho, ela luta por um caminho melhor, para dar o melhor de si mesma). A Doctor é um exemplo a ser seguido.

É uma mudança e tanto, e uma evolução, visto que até agora o Doctor lutava contra as amarguras de sua atuação como um Doutor da Guerra, que culminou no Doctor de Capaldi, o mais empenhado em mediar conflitos e evitar disputas. Seu discurso pré-regeneração humanizou sua versão seguinte e trouxe a evolução que ele vinha buscando desde seu retorno em 2005. Não é à toa que veio como mulher. O homem tem tendência para a guerra, prefere brigar primeiro, dialogar depois, costuma agir por impulso sem pensar nas consequências. A mulher tenta entender, pondera mais, questiona mais, pensa antes de agir, e quando age, busca inicialmente soluções tentando evitar o conflito. E quando o conflito é inevitável e se impor é necessário, ela luta, com uma determinação imparável ~e aqui, no caso, com sua inseparável screwdriver. Esta é outra mensagem trazida com a Doctor. Em tempos difíceis, quando tudo parece estar errado, talvez a melhor ideia seja olhar as coisas sob outro ponto de vista. Por isso, depois de tanto tempo e tantas encarnações masculinas, faz tanto sentido a regeneração em uma mulher. Nestes tempos sombrios, é provavelmente o que nós precisamos. O que o Universo precisa.