A Liga Extraordinária, Promethea e o bem-vindo apocalipse feminino

Promethea

Este artigo contém spoilers de histórias publicadas ao longo das últimas décadas.

“Sinto-me muito ligado à escola dos poetas do Apocalipse, que estão completamente esquecidos hoje em dia e, de fato, ninguém consegue entender porque eram chamados de poetas do Apocalipse quando tudo o que eles falavam era sobre a natureza: passarinhos num galho, flores… O grande totem dos poetas do Apocalipse era Dylan Thomas. O movimento teria incluído pessoas como Henry Treece e vários outros nomes esquecidos. Mas o que eles eram, o que eles queriam dizer com “apocalipse” era simplesmente a revelação. E aquela coisa de que o mundo estava meio que prenhe de revelação se você era alguém que vinha equipado com o jeito certo de olhar e o jeito certo de interpretar ou, se preferir, decifrar… No momento, sinto que, felizmente, em algumas das coisas que estou fazendo, posso estar empregando métodos, ferramentas mentais, modos de ver as coisas, que realmente podem ser usadas nesses tempos turbulentos. Esse é o plano.”

– Alan Moore

Taí um cara que gosta de acabar com mundos, esse tal de Alan Moore. Principalmente os que ele mesmo criou ou ajudou a moldar. Posso estar errado, mas acho que a primeira vez que ele acabou com o mundo foi em sua breve passagem pela Marvel, escrevendo o Capitão Bretanha numa viagem por mundos paralelos continuamente destruídos por uma criatura faminta por destruição. Depois, no Monstro do Pântano, ele acaba com o mundo em um crossover com a Crise nas Infinitas Terras, onde o Bem Supremo e o Mal Supremo se confrontam e o confronto termina quando o Mal se vê diante do irregular herói feito de limo, que ao responder o questionamento sobre o objetivo do mal, diz: “Não posso (…) tentei dar algum sentido às trevas… e falhei. (…) Eu perguntei ao Parlamento das Árvores… com todo o seu conhecimento (…) eles pareciam insistir… em que não existe o mal (…) Eles falaram de pulgões comendo folhas… joaninhas comendo pulgões… e depois sendo absorvidos pelo solo… nutrindo a folhagem… Eles indagaram… onde estaria o mal… dentro desse ciclo… e me disseram para olhar o solo (…) Talvez o mal… seja o humus… formado pela deterioração da virtude… e talvez… seja desse barro sinistro… que a virtude cresça mais forte.” Ao que luz e trevas se enfrentam, o resultado do conflito é um novo universo que parece o mesmo, mas onde o equilíbrio entre luz e trevas finalmente é alcançado.

Só na década de oitenta, o barbudo de Northampton ainda encerraria com o universo em algumas outras ocasiões grandiosas, destacando-se o final de Watchmen (com uma invasão extra-dimensional forjada que acaba por unir nações em conflito em nome de um grande pacto pelo destino da humanidade), o de V de Vingança (onde uma sociedade que tinha dados as costas à democracia, agora precisava encarar sua própria reconstrução, onde o poder verdadeiramente emanaria do povo, ainda muito ocupado em sobreviver à própria barbárie nas páginas finais da história) e em Miracleman (onde, mais uma vez, o que era pra ser uma aventura de super-heróis se torna o brotar de uma utopia forçada, com semi-deuses agindo na intenção de acelerar o desenvolvimento da humanidade, sem necessariamente se importarem se estamos ou não prontos para tal salto). Lance Parkin, biógrafo do barbudo, diz que em 2005, um artigo da revista The End is Nigh, detectou trinta e duas histórias de Moore onde o apocalipse, de alguma forma, era parte essencial da trama.

De lá pra cá, é notório que esse número cresceu, principalmente com Providence e A Liga Extraordinária, mas voltaremos a esses exemplos depois. Por enquanto, vamos nos ater ao exemplo mais gritante e, por que não, didático do tipo de apocalipse que Moore espera que a humanidade possa alcançar.

Promethea

O apocalipse invocado por Promethea, no entanto, diferente dos outros citados, não é a concretização de um plano maligno ou a execução insensível dos ideais dos heróis diante de toda a destruição que seus poderes serão capazes de provocar em nome de uma “mudança”. Não, o que Promethea nos oferece é muito diferente: “O Mundo”, ela diz “não é o planeta ou a vida e o povo sobre ele. O mundo são nossos sistemas, nossas políticas, nossas economias… Nossas ideias de mundo! (…) Há pessoas decididas a manter o mundo como está, pois é sobre esse mesmo mundo que elas mantém seu poder.”

Um aspecto essencial que nos é ensinado sobre como sobreviver a esse fim de mundo e de conceitos é o de que “a matéria é a parte da existência que se cristalizou, onde a luz da mente se petrificou em substância concreta. Além da substância fica a imaginação, o reino iluminado do sonho e ficção, fantasias sexuais e da mente inconsciente.” Mais adiante, quando Promethea faz sexo com um mago em troca de conhecimento mágico, descobrimos que é só na compaixão, na capacidade de união, que o caminho mágico se concretiza: “Um gole do copo da compaixão para acalmar a alma seca e murcha? Eles buscavam o feminino? Eles queriam beber da fêmea. Se afogar nela. Talvez até quisessem se tornar ela. Todos os guerreiros. Todos os magos. Todos os homens. (…) A lança, o bastão deve ser imerso no cálice. Masculino… imerso… no feminino… A força… imersa… na compaixão.”

Falar sobre Promethea e o tratamento dado à narrativa como ferramenta de desenvolvimento espiritual, merece um pequeno interlúdio para tratarmos da obra de Moore, principalmente na época em que essa revista saiu. Um pouco antes do onze de setembro e o mundo era outro, os quadrinhos de super-heróis estavam passando por uma fase de realismo lacerado, muito provavelmente influenciados pela segunda leva de narrativas épicas de heróis após os marcos oitentistas de Crise nas Infinitas Terras, Watchmen e O Cavaleiro das Trevas, com destaque para os dois extremos dessa leva: o niilista Authority, de Warren Ellis, e a utópica Liga da Justiça, de Grant Morrison.

Já o barbudo, mais liberto das amarras editoriais e com um currículo invejável de obras mainstream e alternativas, podia se dar ao luxo de ir em direções mais ousadas em sua carreira – nessa época, Moore já havia abandonado as grandes editoras uma vez (logo após terminar Watchmen e V de Vingança) e produzido alguns clássicos (A Small Killing, Do Inferno, alguns capítulos de Lost Girls e o inacabado Big Numbers) ao mesmo tempo em que botava comida na mesa com coisinhas como Spawn: Feudo de Sangue para a Image Comics. Enquanto mantinha a qualidade elevada de seu trabalho, o britânico tinha abraçado publicamente seu interesse pela magia, relatando em algumas das suas obras, por onde começa a brotar esse novo rumo em sua vida.

“O lugar em que os deuses, sem dúvida, existem é a nossa mente, onde são reais até não mais poder, em toda sua grandeza e monstruosidade”, nos diz Moore através de William Gull, no quarto capítulo de Do Inferno. Mais tarde, o autor atribuiria a uma releitura do texto, onde descobrira essa afirmação que não veria como negar “além das fronteiras do pensamento linear e racional, um território que eu vim a rotular, ao menos para meu proveito, como Magia.”

Mas essa compreensão mística do mundo pedia um algo mais do criador. Tão afeito a esses apocalipses ficcionais que, de mais de uma forma, pareciam repercutir em nosso mundo (lembremos que não muito depois, um dos maiores movimentos de contestação do status quo no século XXI, envergaria uma máscara que vinha sendo queimada em meados de novembro por quatrocentos anos até que Moore a conferisse novo vigor), o mágico de Northampton encerrou o próprio universo ficcional que tinha lhe servido em sua retomada ao gênero dos super-heróis.

Por volta de 2005, irritado com algumas histórias censuradas e a insistência dos produtores do filme baseado em seu V de Vingança, de mentirem dizendo que ele estaria contribuindo com o longa, Moore juntou os panos de bunda e deu um adeus definitivo ao mercado de quadrinhos americano. Antes, no entanto, ele provocou mais um apocalipse. Nas últimas edições de Promethea, Moore garantiu que não sobraria pedra sobre pedra. E, ainda assim, sobrou.

O apocalipse promovido pela heroína científica garantiu que segredos fossem revelados e a humanidade alcançasse a graça da compreensão. Quando o apocalipse acontece nas páginas de Promethea, não são personagens tentando encontrar o próprio caminho que testemunham esse momento, mas nós, leitores, que passamos a fazer parte da história e até ganhamos voz nela.

Mas é a voz de Promethea que interessa: “Veja, sou imaginação. Sou real, e sou a melhor amiga que você já teve. Quem você pensa que arranja todas essas coisas legais? As roupas que está vestindo. O quarto, a casa, a cidade na qual está. Tudo nela começou na imaginação humana. Suas vidas, suas personalidades, seu mundo inteiro. Tudo inventado. (…) Todas as coisas são precipitadas pela natureza da existência. Nada, consequentemente, é antinatural (…) Tudo é Universo. Tudo é santo, centelhas raras de criação, da vida e da consciência. (…) E todos nós, a miríade de contingências das cobras da vida, enrolados em três dimensões, sofrendo as ilusões do tempo, temendo nosso fim, sem compreender que cada segundo é eterno, aqui para sempre. (…) Isso, então, é a Revelação. Tudo é um, e todas as divindades, esse belo e imortal fogo de seres que são tudo sobre nós, que nós somos. Oh, homem, oh, mulher, conheçam a si mesmos, e saibam que são divinos. (…) Celebrem. Seu mundo acabou. As crenças sobre as quais ele foi fundado esvaneceram diante do escrutínio quântico de nova ciência, jamais existiram. Os portões da cela do tempo estão destrancados, a prisão da ambição material que os reduzia agora se vê demolida.”

Legal, não é? Mas ainda não acabou. Este é o apocalipse que Alan Moore nos deu, o sadio despertar promovido por uma semi-deusa, uma heroína que a cada tantas gerações retorna do mundo imaterial apenas para nos ajudar a saudar os novos tempos que brotam e que, no mínimo, pedem um tanto de sacrifício e coragem para nos desnudarmos do peso anterior, para entrarmos com alguma leveza nessa nova jornada.

Dito isso, vamos falar de outro fim do mundo surgido da mente de Moore, aquele que ele quer que sintamos na pele enquanto a casca do mundo escorre, revelando o que há por baixo. Mais especificamente, vamos falar sobre o apocalipse perpetrado nas páginas da Liga Extraordinária.

Vale dizer que A Liga dos Cavaleiros Extraordinários foi a única série que Moore levou consigo quando abriu mão do contrato com a DC/Warner, encerrando com o selo America’s Best Comics em 2005, com as últimas edições de Promethea e Tom Strong. A Liga, à primeira vista, não passa de um bem elaborado exercício criativo de Moore, partindo de uma premissa bem parecida com a de Lost Girls, só que bem mais perversa. A sexualidade explícita deste último envolve diversos tipos de abusos, alguns à luz das convenções sociais da época, mas quase não se fala da presença do Estado; este é uma ameaça ausente, manifestado apenas no final, na forma do exército que surge, não para coibir abusos, mas trazer a destruição e o fim das liberdades. Já em a Liga Extraordinária, o buraco é mais embaixo: o Estado premia e dá emprego a estupradores. Vamos falar sobre isso.

No primeiro volume da Liga, em 1898, um agente do MI5, chamado Campion Bond (que por sua vez está sob o comando da alta autoridade M.) recruta uma professora de música, Mina Murray, recém-divorciada após ter se envolvido amorosamente com o Conde Drácula, que é incumbida de reunir e comandar um grupo de aventureiros e cientistas loucos. Entre eles, Capitão Nemo, o príncipe pirata com suas máquinas e armas criadas pelo próprio, que fornece transporte em seu Nautilus, para que eles possam “recrutar” os outros.

Em sua primeira missão, Mina tem que entrar num antro de ópio, onde o lendário Allan Quatermain dá uma de Mark Renton no fundo do poço do vício. Quando Allan se recusa a falar com Mina, ela é atacada por um grupo de homens, que tentam estuprá-la. Mina sofreria muitos outros ataques ao longo da série, mas aqui ela é resgatada por Quatermain, que atira em um dos homens e quase morre nas mãos de outro, que Mina esfaqueia pelas costas. Fugindo pelo porto, os dois, depois de salvarem-se um ao outro, são resgatados por Nemo. E é aí que a história fica complicada: enquanto acompanhamos o debilitado Allan lidando com os sintomas da abstinência, não há uma linha de diálogo que se refira à tentativa de estupro sofrida por Mina. Mas Nemo questiona suas “credenciais” para aquele tipo de serviço e faz com que um atormentado Quatermain a acompanhe ao centro de Paris, para que desvendem os crimes da rua Morgue.

Novamente, violência sexual à espreita quando um impotente Henry Jekyll se transforma no monstruoso Edward Hyde, que mata suas vítimas – prostitutas com as quais, ao que parece, ele não consegue se relacionar e, entre a ira e a frustração, tornam-se vítimas por isso. Novamente, Mina é resgatada e o monstro, subjugado e recrutado para servir aos interesses do Império Britânico. A seguir, o grupo é enviado até uma escola onde a “sagrada concepção” anda mais comum que ir ao banheiro. No fim, o grupo descobre que se trata de um homem invisível. De fato, O Homem Invisível, Hawley Griffin, que estupra as alunas da escola durante a noite. Desta vez, é Mina quem para o monstro, que também passa a integrar o grupo.

É interessante notar como o primeiro volume da Liga trata esses momentos de violência contra a mulher de forma quase leviana: se não ler com atenção, ficará com a sensação de que o estupro está ali apenas como parte da engrenagem narrativa, encaminhando-nos para a aventura que, esperamos, um grupo literário como esse, reunido pelo governo, logo terá de encarar. E eles, de fato, partem para a aventura, mas engana-se quem pensa que Moore não está atento a violência que faz seus personagens passarem:

“Bem, é bem óbvio que a opção mais fácil e confortável teria sido seguir com uma certa censura do status quo e simplesmente não fazer referências a questões sexuais, nem indiretamente. De fato, como me lembro, esta foi a exata opção da maioria dos meus contemporâneos no meio, tendiam a tomar uma posição padrão já que eles, compreensivamente, relutavam a desagradar seus editores para não comprometer suas chances futuras de trabalho. Me parecia, no entanto, que se os quadrinhos não podem se utilizar de questões adultas – e com isso, eu estou falando sobre coisas muito mais complexas que simples problemas sexuais – então, o meio nunca poderia progredir para se tornar uma mídia séria e artisticamente aceita, e nunca poderia passar de hobby nostálgico para adolescentes tardios. Na minha mente, a única a que tenho acesso direto, uma mídia com um potencial tão surpreendente merecia mais que isso. Junto com questões políticas e sociais, eu elegi as questões sexuais como parte do meu trabalho. (…) Então, talvez esta próxima decisão que tomei me faça culpado: meu pensamento foi de que a violência sexual, incluindo estupro e abuso doméstico, deveriam também aparecer no meu trabalho, onde fosse necessário ou apropriado para conduzir a narrativa, com a alternativa sendo de insinuar que essas coisas não existiam ou não aconteciam.”

Sendo assim, é óbvio que tais questões não estariam encerradas no conjunto de histórias da Liga Extraordinária. No segundo volume da série, que basicamente se passa ao largo dos eventos de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, novamente sexo e violência são parte da trama. Em uma passagem, Mina conversa com o monstruoso Edward Hyde, que confessa sentir-se atraído por ela:

“Às vezes, acho que deveria só te estuprar e decapitar. Mas uma voz em mim, ainda mais feroz que a minha, me diz que se eu fizer isso, a seguir devo tirar minha vida. É intrigante. Talvez seja porque então, eu terei matado a única coisa viva que não me teme.”

Ao ouvir de Mina que ela o teme, sim, e muito, Hyde responde que, talvez seja verdade, mas ele sente que ela já conheceu alguém muito pior do que ele. Como sempre faz quando se sente atormentada pelo passado, instintivamente ela toca a echarpe que lhe cobre o pescoço, escondendo as feridas provocadas por Drácula.

Um pouco adiante, Mina é novamente atacada, desta vez pelo Homem Invisível, que não a estupra, mas a humilha, forçando-a a dizer que é uma “putinha arrogante”. A resposta a esse ato de violência acontece mais tarde, quando Hyde sodomiza o Homem Invisível e o espanca até a morte, dizendo que mal podia se lembrar da última vez em que se sentira tão “bem disposto” – na minha opinião, isso reforça a ideia da impotência e eventual violência de Jekyll/Hyde contra as prostitutas de Paris.

Neste mesmo volume, em cenas quase explícitas, Allan e Mina transam. É interessante observarmos que se trata do desejo de duas pessoas com idades bem diferentes e que o ato sexual não acontece como num filme pornô. No que me parece um ato incomum à época de seu lançamento, Mina recebe sexo oral antes de se deixar penetrar e, após algum tempo, a idade e o estresse parecem pesar sobre o septuagenário, fazendo com que Allan fique por baixo e deixe Mina ditar o ritmo, principalmente quando ela pede que ele a morda. Ao que parece, certos gostos nunca saem de moda.

Avançamos um pouco no tempo (sessenta anos, precisamente) e reencontramos Allan e Mina, ele rejuvenescido, ela liderando o que restou da Liga. No chamado Dossiê Negro, o grupo não existe mais, mas Quatermain e Murray agora fazem parte de algo muito maior, são agentes do Blazing Worlds, o mundo flamejante onde seres fantásticos do imaginário se refugiaram depois da 2ª Guerra Mundial e a ditadura promovida pelo Grande Irmão.

Neste álbum, aliás, o padrão é retomado, mas com algumas diferenças: novamente Mina sofre uma tentativa de estupro. Mas desta vez ela sozinha se livra de seu agressor, que é o James Bond (embora, porque aqui não lidamos mais com personagens em domínio público, seja chamado apenas de Jimmy, o neto do Campion), retratado como um assassino bruto e pouco afeito ao romance, que se dá mal quando tenta abusar da mulher que derrotou o Drácula. E não só.

Promethea

Promethea

Promethea

Promethea

Promethea

Promethea

Mina, agora sabemos, não foi escolhida líder à toa. Conforme fica claro nos textos anexos tanto no segundo volume quanto em o Dossiê Negro (onde tais textos fazem parte da própria narrativa principal), Mina, além de uma guerreira exemplar, é também uma mulher a frente de seu tempo de muitas maneiras. Lembrem-se de que logo nas primeiras páginas, ela já dizia não dar a mínima quanto aos sentimentos do ex-marido a respeito do fato de ter voltado a usar o nome de solteira. E, talvez por isso mesmo, após as mortes do Homem Invisível e de Jekyll/Hyde, ela se isolou na ilha de Coradine, uma sociedade utópica e predominantemente feminina.

O terceiro volume da Liga Extraordinária, Século, de certa forma serve à premissa Mooriana de que o século XX teria sido parido com os crimes de Jack, o Estripador, na Inglaterra de 1888. Aqui, Mina, Allan e o/a parceiro(a) dos dois, o trans-contínuo Orlando (um guerreiro imortal que involuntariamente muda de sexo com o passar dos anos) formam uma relação harmoniosa que, de certa forma, encerrará o século de violência masculina criado nos becos de Londres. De fato, são os laços entre os três que possibilitarão o apocalipse. E impedirão outro.

Na primeira parte de Século, 1910, logo de cara somos apresentados a questão que norteará a história.

Oliver Haddo, um personagem inspirado na figura real de Aleister Crowley, pretende dar início ao apocalipse gerando uma Moonchild, um bebê gerado com a alma de um ser etéreo que vai salvar e aprimorar a raça humana. Alertados por um sonho de Thomas Carnacki, a Liga, ainda trabalhando pro governo britânico, tenta impedir os planos do mago, acabando por informar a Haddo que esta é a sua missão.

Em paralelo à trama da Liga, testemunhamos também os momentos finais de Nemo, isolado em sua Ilha desde o final do século passado. E conhecemos Jenni, a filha de Nemo, que resiste a ideia de tomar o lugar do pai como conquistadora e guerreira dos oceanos, fugindo para Londres, onde acaba sendo vítima de um estupro coletivo, sem que ninguém apareça para lhe salvar, deixando cada vez mais explícita como a relação entre homens e mulheres é o que definirá, afinal, o destino do mundo.

Nessa altura, vamos dar um salto até 1964, nos anexos de Século, que contam uma aventura de ficção científica aos moldes das publicações da época, um toque de absurdo para cada dose de ciência. Nessas páginas, o grande vilão do primeiro volume, o M., que descobrimos se tratar de James Moriarty, o arqui-inimigo de Sherlock Holmes, é resgatado de seu túmulo gelado no espaço e usado como “sementário” por amazonas lunares. Como acontece no Monstro do Pântano, aqui, o mais perverso se junta ao mais puro para gerar uma nova possibilidade de vida.

Cinco anos depois, em 1969, a segunda parte de Século, nos apresenta o desenrolar dos planos de Haddo, avançando não apenas na criação do Moonchild, mas também na continuidade de vida do próprio Haddo. Convertido numa espécie de vírus, esse tipo Crowley transfere sua consciência de corpo para corpo até o momento em que poderá ajudar na gestação da Criança Lunar.

Nesta mesma edição, Mina volta a ser abusada durante uma bad trip de ácido, pelo espírito de Haddo e por um homem chamado Tom Marvollo Riddle, que depois passaria a ser conhecido como “Você Sabe Quem” ou Voldemort. Desta vez, ninguém salva Mina. Ela é internada num manicômio, onde passa quarenta anos.

E voltamos a encontrar a Liga na terceira parte, dividida e abandonada na iminência do surgimento da Criança Lunar engendrada por Haddo. E aqui, concluímos que não podemos mais contar com os heróis.

Orlando, que só havia aparecido como homem em 1910, começa a história embriagado pela guerra, só mais uma numa longa tradição de batalhas vividas por ele e iniciadas em Troia – logo, transformado novamente em mulher, ela busca reunir o grupo. Allan agora está perdido, consumido pelo vício retomado no auge do movimento punk, ele vive pelas ruas, imortal e amaldiçoado pelo próprio passado, que é incapaz de esquecer. E Orlando resgata Mina, que segue dopada num hospital psiquiátrico.

Já estamos chegando ao fim, o confronto final é chegado quando Mina e Orlando localizam o jovem que derrotou Voldemort (vocês conhecem, não é? Tem oito filmes sobre o rapaz, gente!), mas não conseguem lidar com sua força, até que Allan Quatermain retorne, fazendo o que fez sempre desde o primeiro volume: encara o inimigo com uma grande arma.

Antes de revelar seu destino, faço um comentário que não deve agradar muito, pois creio que no corpo geral da Liga Extraordinária, com exceção dos momentos em que dispara tiros com armas ridiculamente grandes, Allan Quatermain não faz muita coisa. Sim, ele ama, investiga e corre o mundo, tornando-se um imortal, mas, no que tange à ação, Allan não é muito útil. E assim, dando um tiro inútil no Anticristo de Hogwarts, Allan morre com um jato de mijo elétrico, dado pelo garoto com uma cicatriz na testa.

Antes de morrer queimado, Allan ouve de Mina que ele é o seu herói. Mas são as mulheres, Mina e Orlando (armada com Excalibur, Orlando talvez seja o equilíbrio perfeito entre masculino e feminino, exatamente como foi ensinado a Promethea), junto de Deus (que é a Mary Poppins), que são capazes de interromper o Apocalipse. Ou, ao menos, é o que elas pensam.

E esse novo mundo que se anuncia, embora não seja mais uma incógnita (o último volume da Liga, Tempest, está em vias de se encerrar lá fora), não será tratado aqui, mas digo que se for um Apocalipse parecido com o anunciado em Promethea, que venha logo. Não precisa esperar outro século, as mulheres vão salvar o mundo agora mesmo.