Adoráveis Mulheres e Aves de Rapina e a Emancipação Fantabulosa da Arlequina são dois filmes com propostas absolutamente diferentes e com resultados igualmente diferentes. O que ambos tem em comum é o fato de serem dirigidos por mulheres e trabalharem questões relacionadas com o feminino. O primeiro é um cinema autoral e o segundo é um cinema comercial. Aparentemente distantes. Mas não é bem assim.
Adoráveis Mulheres tem direção de Greta Gerwing e Aves de Rapina possui direção de Cathy Yan. O que é curioso é que, além das similaridades temáticas em torno do feminino, os dois filmes também amargaram uma resposta morna em seus respectivos campos, ou seja, Greta Gerwing não obteve ao menos uma indicação de Melhor Diretor(a) no Oscar e o filme de Cathy Yan sempre surge no noticiário como um filme que não correspondeu às expectativas da bilheteria.
Há uma distância entre ambos os filmes em termos de potência, é verdade. Greta Gerwing, uma diretora mais experiente, produz um filme sensível e com uma construção narrativa ímpar, resultando em um dos melhores filmes do ano de 2019. Cathy Yan não consegue se desprender de determinados obstáculos narrativos de uma típica história de origem de super-heróis, especialmente em sua narrativa truncada na primeira metade do filme, talvez fruto de uma iniciativa de repetir os recursos narrativos de Deadpool. Os dois filmes propõem uma desconstrução da linearidade narrativa e o filme de Gerwing encontra nesse recurso seu grande trunfo. No filme de Yan, contudo, acaba sendo um dos seus pontos mais baixos. Ainda assim, o novo filme com a Arlequina é uma boa peça de entretenimento e merecia uma resposta de bilheteria maior do que o primeiro filme em que a personagem apareceu, Esquadrão Suicida.
Todas as mulheres de ambos os filmes possuem suas vidas subordinadas ao mundo masculino. O interessante é observar como as duas protagonistas subvertem, cada uma a seu modo, essa estrutura de subalternidade ao mundo patriarcal. Adoráveis Mulheres apresenta um grupo de mulheres do Século XIX subordinadas aos desejos masculinos como forma de entendimento da ascensão feminina. O casamento, assim, se torna um espaço de jogo para que as mulheres alcancem seus objetivos.
A hipótese que apresento é a de que os dois filmes sofreram obstáculos em seus respectivos campos por apresentarem protagonistas mulheres que buscam a afirmação de sua autoria. O meio acadêmico hollywoodiano e o público consumidor de filmes de super-heróis tiveram uma resistência em enxergar que a jornada de Jo March busca legitimar a sua autoria literária e que a jornada da Arlequina busca legitimar sua autoria criminal.
Numa passagem de Aves de Rapina, vemos que Arlequina explica para Canário Negro que ela é uma arlequina e uma arlequina não é nada sem seu mestre. Ela claramente fala de Coringa como o arquétipo masculino que está acima dela em termos de autoridade, mas essa é uma verdade estabelecida por todas as outras personagens do filme de Yan. Caçadora tem que superar a sua origem relacionada à disputa masculina por território criminal; Renee Montoya deve superar os abusos de poder de seu chefe na polícia; Canário Negro apresenta-se no filme subordinada ao universo criminal do personagem Máscara Negra. O que Greta Gerwing parece assumir de imediato, e Cathy Yan demorou um pouco mais a compreender (devido a primeira metade do filme ser da Arlequina e não das Aves de Rapina enquanto grupo) é que ambos os filmes são sobre sororidade. E é nesse aspecto que reside a qualidade de ambos.
Há pontos similares também em como essa sororidade é apresentada através da não vilanização de determinadas personagens femininas. Se Arlequina praticamente faz uma aliança temporária com combatentes do crime, fugindo de ser a vilã, a caracterização da personagem Amy March em Adoráveis Mulheres foge de qualquer possibilidade de ser enxergada como vilã. Afinal, poderia bem ser um recurso fácil, visto que ela e sua irmã, a protagonista Jo March, possuem temperamentos fortes e disputam objetivos em comum. As diretoras dos dois filmes optam por manifestar que a sororidade entre as mulheres é a melhor resposta em uma verdadeira luta de classe das mulheres, tendo em vista que nos dois lados dos filmes, as mulheres lutam pela própria sobrevivência em um mundo patriarcal que as condena à solidão.
Porque todas as mulheres em ambos os filmes são extremamente solitárias e só encontram ressonância e força no olhar de uma para a outra. Um dos momentos mais bonitos de Aves de Rapina é quando, durante uma boa sequência de luta, Arlequina encontra tempo para emprestar um elástico de cabelo para Dinah Lance, a Canário Negro. É simples. Mas é eficiente.
A grande qualidade do filme da Greta é a construção temporal, a forma como as personagens parecem dominar o seu tempo. A edição de Nick Houy é precisa ao intercalar os dois momentos das personagens de Adoráveis Mulheres. Temos juventude e vida adulta intercalados no filme e a construção se dá num crescendo para poder compreender e chegar na emancipação da personagem Jo March como autora.
A emancipação da Arlequina é uma dúvida; será que ela acontece nesse primeiro filme, tendo em vista que ela continua a reproduzir os padrões de seu companheiro agressor, o Coringa? Em Aves de Rapina talvez o desafio da diretora tenha sido ainda maior nessa adaptação porque todas as personagens construídas já partem de um a priori masculino, são personagens femininas que se originam nos quadrinhos a partir de mundos masculinos. Helena Bertinelli, a Caçadora, e a detetive Renee Montoya são oriundas do universo de Batman. Dinah Lance, a Canário Negro, oriunda do universo de Arqueiro Verde. Arlequina, por sua vez, oriunda do universo do Coringa (e por consequência, do Batman também). Talvez a emancipação da Arlequina, como ela mesmo diz, passe por ela deixar de ser Arlequina, deixar de ter a necessidade de um mestre que não seja ela mesma.
Em Adoráveis Mulheres, as questões relacionadas a diversidades raciais e LGBTs não são retratadas no filme por ele se basear em um livro de época, permitindo a diretora centrar sua narrativa no universo feminino. Embora seja algo que se possa sentir falta, o foco de Greta Gerwing no feminino é um apelo da narrativa original e muito bem conduzido. Cathy Yan, por outro lado, trabalha essas questões em seus filmes com resultados diferentes. A questão racial é diversificada em Aves de Rapina através da escolha das atrizes para seus papéis: Cassandra Cain é interpretada por uma atriz oriental, como a diretora; Canário Negro por uma atriz negra e Renee Montoya por uma atriz descendente de latinos. Embora o tratamento da questão seja superficial, por ser um filme de entretenimento, a representação é mais satisfatória do que os dois personagens que são insinuados como homossexuais, Máscara Negra (Ewan McGregor) e Mr. Zsasz (Chris Messina). Embora seus atores façam um ótimo trabalho, roteiro e direção apresentam a suposta homossexualidade dos dois personagens como uma representação relativamente perversa e discretamente estereotipada.
Em duas entrevistas recentes tivemos exemplos de como o mundo do entretenimento não é exatamente amigável com as mulheres e com o seu protagonismo em tela. A atriz Margot Robbie, intérprete da Arlequina, afirmou que a Warner não queria produzir seu filme; através de algumas entrevistas, Robbie disse que tinha como intenção fazer uma trilogia: a primeira apresentando as Aves de Rapina, heroínas; o segundo filme apresentando as Sereias de Gotham, grupo do qual fazem parte Hera Venenosa, Mulher-Gato e a própria Arlequina; e um terceiro onde os dois grupos se uniriam.
Mark Rufallo revelou recentemente que um dos produtores da Marvel quase quis a demissão de Kevin Feige por conta de uma maior representação de negros, mulheres e LGBTs nos filmes. Felizmente, isso não ocorreu, até porque seria uma incongruência tendo em vista que desde a sua criação nos anos 1960, às vezes em maior grau, às vezes em menor grau, todas essas questões foram trabalhadas nos quadrinhos da Marvel.
O importante é salientar que essa busca das mulheres para encontrar e fazer valer a sua autoria é totalmente legítima e a resistência será grande por parte de uma sociedade patriarcal. Embora com propostas diferentes (autoral e comercial), os filmes de Greta Gerwing e Cathy Yan são obras de diretoras que querem ser ouvidas enquanto profissionais de cinema e como autoras. Uma busca pela autoria que elas compartilham com suas protagonistas femininas.
Nota: Ao final da escrita fui procurar se havia, por acaso, alguma ilustração que pudesse fazer um mix com os dois filmes. E encontrei uma ilustração realizada por Petrana Radulovic para o site internacional Polygon. Para minha surpresa, além da ilustração, Radulovic também apontou alguns caminhos semelhantes entre os dois filmes, inclusive relacionando ponto a ponto personagens do filme de Greta Gerwing com os do filme de Cathy Yan. Ficam aí os devidos créditos da ilustração e link abaixo para o texto de Petrana Radulovic como complemento.
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