Uma resenha ácida de Lovelines: A Linha do Amor

Lovelines

É engraçado como, quando chegamos à vida adulta e começamos a analisar algumas coisas as quais curtíamos na época em que éramos mais jovens, percebemos que algumas das tais coisas envelheceram mal. Entretanto, há certos itens que tal “desculpa” não se aplica, pois, já nasceram com o status de “bela porcaria”. Um filme que se encaixa perfeitamente nesta classificação é Lovelines: A Linha do Amor, lançado em 1984.

Soube da existência deste filme quando um colega de escola chegou todo empolgado falando da obra na hora do recreio. “Esse filme é muito foda!” “Cara, o Bingo é demais!” Essas e outras frases desconexas junto com um desenho feito a lápis de todos os personagens do filme (sim, eu, esse colega e mais outro éramos do pequeno grupo de crianças que desenhavam bem no colégio). O sujeito tentou me convencer com todos os argumentos possíveis de que Lovelines: A Linha do Amor era uma das grandes maravilhas cinematográficas da cultura pop da época, leia-se, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Bom, já que o cidadão fez tanta propaganda desta obra-prima, pedi a ele que, no dia seguinte, me emprestasse a fita VHS na qual o mesmo tinha gravado o filme exibido numa tarde do extinto “Cinema em Casa” exibido no SBT.

Cheguei em casa depois de mais uma entediante maratona de aulas no colégio. Tirei da mochila a fita VHS e coloquei no videocassete para sua exibição. A fita possuía uma etiqueta devidamente decorada com uma arte ao redor do título do filme, feita com caneta Bic e canetas hidrocor. Daí, percebia-se o grande valor que este ícone da sétima arte tinha na videoteca do meu coleguinha. Enfim, apertei o play e comecei a assistir. Para você ter ideia do que está por vir, eis o trailer de Lovelines: A Linha do Amor em alemão:

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O filme começa com um voice-over feito pelo Michael Winslow explicando o contexto da história para o espectador. Para quem não sabe, Michael Winslow ficou conhecido como o Larvell Jones da clássica heptologia Loucademia de Polícia, aquele cara que fazia sons de um monte de coisa com a boca. Obviamente, só vi que o voice-over no início do filme era do Michael Winslow quando ele aparece, de fato, no filme, pois, quem fez a voz dele nesse filme não foi o Danton Melo como em Loucademia de Polícia.

Voltando ao filme, J.D. (Michael Winslow) é dono de um serviço telefônico numa cidadezinha da Califórnia chamada Lovelines (quem poderia imaginar que essa “grande sacada” coincidiria com o título do filme, não é mesmo?). A função da empresa era criar e administrar salas de bate-papo via linha telefônica. Tipo, a pessoa ligava pra lá, e mandava a letra pro cara: “J.D., faz uma sala de bate-papo com fulano, cicrano e beltrano, belê?” Daí, J.D. pedia para sua equipe de telefonistas colocarem as pessoas mencionadas numa mesma linha, fazia o telefone das mesmas tocar e, assim que atendiam, o bate-papo rolava. Sem contar que J.D. ouvia todas as conversas e, às vezes, se empolgava e dava pitacos. Ou seja, o camarada tinha um serviço de telefonia com direito a grampo telefônico grátis. Mas esse cara é um grande empreendedor! Sempre é bom lembrar que nessa época não existiam smartphones, e muito menos, internet. Para ilustrar como funcionava a Lovelines, J.D. cria uma “sala” de bate-papo com um grupo de amigas, as quais uma delas era a protagonista feminina da história: a “adolescente” Piper (Mary Beth Evans, mas já vamos chegar nela). Quando o telefone de cada uma tocava, as gurias paravam o que estavam fazendo para atendê-lo. Piper, por exemplo, estava caminhando na areia com uns amigos, com uma prancha de surf debaixo do braço, a poucos passos da água prestes a pegar algumas ondas. Daí, ela escuta seu telefone fixo tocar a uma distância de algumas centenas de metros do ponto onde estava, larga a prancha de surf na areia e manda um: “foi mal, galera, não vai dar pra pegar onda hoje porque meu telefone está tocando”, e volta correndo para atender. Prioridades, né?

Vamos à história: o filme se passava durante um torneio de bandas entre os colégios da região, porém, duas destas escolas eram rivais entre si: Malibu High e Coldwater Canyon High. As primeiras cenas são Piper e suas amigas, todas adolescentes com aparência de vinte e poucos anos como a maioria dos filmes da época, planejando um “ataque” contra a Coldwater para, na sequência, executarem o plano nas dependências de sua escola rival. Não entrarei nos detalhes da investida na escola rival para não dar spoiler, mas são coisas no mesmo nível dos planos infalíveis do Cebolinha, com a única diferença é que, desta vez, dá certo. Por conta do alvoroço iniciado pelas moçoilas, Piper acaba buscando refúgio no teatro onde Rick (Greg Bradford) estava ensaiando com sua banda. Piper, a mocinha adolescente caucasiana, loira de olhos azuis com 23 anos (idade da Mary Beth Evans na época) faz contato visual com o rapaz que, por sua vez, um adolescente caucasiano, bronzeado, de maxilar largo, também loiro de olhos azuis com 29 anos (idade de Greg Bradford na época). Percebe-se que é um filme que se preocupa com a diversidade, não é mesmo? Continuando. A “jovem” pede ajuda ao mancebo, através de gestos, para que ele não revelasse seu esconderijo. Rick dá a entender que concorda e continua ensaiando com uma estampada cara de paisagem. Piper, então, consegue fugir do colégio rival com suas amigas. O mais incrível deste surpreendente roteiro assinado por Chip Hand, é que logo no início vê-se que ele inverte as fases da Jornada, onde ele coloca primeiro a fase do “Chamado para a Aventura” na sequência do “ataque” ao Coldwater fazendo Rick e Piper se conhecerem e, depois sim, apresenta a fase do “Mundo Comum”, onde o cotidiano dos protagonistas é apresentado e passamos a conhecer todos os magníficos personagens que cercam o par romântico desta obra-prima do cinema oitentista.

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Rick tem como melhores amigos Jeff (Don Michael Paul), o bonitão malandrão arquiteto de todos os planos do trio (os carros de uso do cara eram uma van com 4 eixos -dois traseiros e dois dianteiros, fico imaginando como ele faz baliza com esse troço- e um Chrysler Laser com um lançador de balões cheios de cerveja no porta-malas, uma versão high school da Super Máquina certamente) e Beagle (Robert DeLapp), um nerd membro do clube de audiovisual do colégio e que usa boina, echarpe e toda aquela indumentária típica dos admiradores de cinema blasé. Só faltou o tênis verde pra completar o conjunto. Beagle, além de ter sido batizado de “Bingo” na dublagem justamente porque a palavra bate com os movimentos da boca no original, ganhou uma personalidade irreverente na voz do dublador Oberdan Júnior que usou e abusou na inserção de “cacos” no texto, ao contrário do original, que era um verdadeiro pateta. Já Piper, suas amigas também são membros de sua banda chamada Firecats, que concorre na Batalha das Bandas Escolares, evento promovido por J.D. cujo real interesse é ser agente da banda vencedora e, com ela, assinar um contrato com o empresário mais importante do mundo das gravadoras na ocasião: Lloyd Sidewalk (Michael Lloyd). A jornada de J.D. para conseguir entrar em contato com Lloyd funciona como subtrama na história e oportunidade para explorar o grande talento de Michael Winslow: imitar sons com a boca. A ideia funcionou tão bem que, em diversos momentos, eu acabava me esquecendo de dar risada por conta de tamanha genialidade do roteiro. (Ah, sim! Já ia esquecendo de dizer que Rick representa a Coldwater Canyon com sua banda chamada Racer. São tantos detalhes nessa obra primorosa que a gente até acaba deixando passar um e outro. Perdão.)

Os protagonistas, então, ficam mais próximos durante a Batalha das Bandas e passam a ter um romance. Assim, vemos na história uma clara e super bem desenvolvida (para não dizer o contrário) inspiração no clássico literário Romeu & Julieta de William Shakespeare, só que, em vez do peso da rivalidade das famílias, a forte influência da rivalidade entre as escolas passa a ser um fator fundamental no futuro da relação do casal. Tal rivalidade entre escolas de Lovelines: A Linha do Amor deve ter servido como grande influência para o tratamento que J.K. Rowling deu nas casas de Hogwarts durante a saga de Harry Potter. Certeza.

Lovelines: A Linha do Amor também nos presenteia com personagens riquíssimos de tão bem desenvolvidos como, por exemplo, o irmão de Piper cuja alcunha era Godzilla (Frank Zagarino) e duas… repito, DUAS sequências de breakdance totalmente fora de contexto inseridas sabe-se lá por qual motivo no meio do filme como esta aqui durante a cena de uma festa à fantasia onde Rick e Piper se encontram (notem a pizza embaixo do braço do sujeito com gravatinha borboleta vermelha):

Lovelines: A Linha do Amor foi um filme que me despertou um grande misto de sensações: vergonha alheia, vontade de arrancar meus olhos, de jogar meu videocassete pela janela, de me deitar no meio da Avenida Brasil durante um horário de bastante movimento (na época, ainda não tinham construído a Linha Vermelha), ou de, simplesmente, tacar a fita VHS na cabeça do meu amiguinho e, com o dedo em riste, dizer para que ele nunca fizesse aquilo de novo, mas como sou ou, pelo menos, tento ser uma pessoa civilizada, devolvi a fita no dia seguinte e quando ele perguntou se eu tinha gostado do filme, eu, apenas, fingi demência e acenei, como dizem por aí. Deixo aqui o questionamento: o que se pode esperar de um filme em que o protagonista usa um suéter rosa, calça jeans embalada a vácuo e um tênis Converse azul para combinar no primeiro encontro com seu interesse romântico? É para refletir.