Dois Olhos Satânicos

Dois Olhos Satânicos

Dois Olhos Satânicos

Dois Olhos Satânicos (1990), George A. Romero e Dario Argento.

Uma releitura de dois contos do famoso escritor Edgar Allan Poe produzida por dois grandes nomes do cinema de terror, George A. Romero e Dario Argento. O longa é, na verdade, dividido em duas histórias menores, de uma hora cada, construídas separadamente por um dos cineastas. Romero é responsável por O Caso do Senhor Valdemar (The Facts in the Case of Mr. Valdemar), enquanto Argento comanda O Gato Preto (The Black Cat). O filme funciona como uma grande homenagem destes dois cineastas ao homem que lhes serviu de inspiração em suas obras e possui a qualidade inerente ao trabalho de ambos.

Na primeira história, O Caso do Senhor Valdemar, George A. Romero traz a adaptação do conto de Poe com leves alterações. O diretor altera boa parte da trama do conto original para construir um roteiro mais adequado à ideia com a qual pretendia trabalhar e usa o elemento da hipnose no momento da morte para tratar de temas como ganância e retribuição cármica (uma temática que aparece nos dois contos do longa). O resultado é divertido, mas foge bastante da proposta do conto de Poe. Todavia, verdade seja dita, O Caso do Senhor Valdemar é um conto complicado para se adaptar para o cinema. No fim, acaba virando uma história básica de zumbi (marca do diretor). Na trama, uma ricaça chamada Jessica Valdemar (Adrienne Barbeau) possui um marido que está com os dias contados. Assim que ele morrer ela herdará uma fortuna e, junto com seu amante, Dr. Robert Hoffman (Ramy Zada), ela arma um plano ousado para conseguir esta grande antes que o marido bata as botas. Hoffman, que é médico, hipnotiza o velho Ernest Valdemar (Bingo O’Malley), forçando-o a fazer ligações para o advogado favorecendo a sua mulher caso ele morra. O inesperado acontece quando Valdemar morre ainda hipnotizado e o casal de amantes precisa esconder o corpo até que a herança esteja em suas mãos. O problema é que Valdemar começa a se comunicar com eles. Apesar de não ser uma das melhores produções de Romero, a adaptação consegue agradar, especialmente graças ao elenco. Barbeau cria muita tensão com as oscilações de seu caráter, enquanto Zada é hábil em nos apresentar um calhorda que, apesar de tudo, não abandona seus deveres como médico, um homem que nos provoca sentimentos ambíguos. O Caso do Senhor Valdemar, certamente, vale a pena de ser visto, especialmente para os fãs do estilo de Romero, facilmente perceptível.

A parte de Dario Argento, O Gato Preto, é mais soturna e mórbida, trabalhada de forma mais concisa e com a qualidade característica aos melhores trabalhos do diretor, como Suspiria (1977). A história não contém muitos dos elementos normalmente usados por Argento (efeitos visuais incomuns, tramas não-lineares, gore), mas ainda possui aspectos reconhecíveis do cineasta. Ele conduz a narrativa de forma mais hitchcockiana e insere superstições e bruxarias que tornam a atmosfera mais paranoica, que vem acompanhada de loucura e assassinato (temas recorrentes de Argento). A trama também foi bastante modificada em relação à obra original. Usher (Harvey Keitel, numa atuação impecável) trabalha como fotógrafo de defuntos e mutilações, estando sempre presente nas cenas dos piores crimes. E ele sente prazer no que faz, algo que já diz muito sobre a personalidade do sujeito, que se torna um homem cruel quando sua mulher, Annabel (Madeleine Potter), aparece em casa com uma gata preta. Usher não gosta da ideia e tem problemas com o animal. O ódio pelo gato cresce de tal forma que o fotógrafo mata o bichano, destruindo junto a relação com Annabel, que não consegue perdoá-lo pelo que ele fez. Argento constrói com esmero uma atmosfera de insanidade constante, no qual o nosso mundo é representado sob uma visão doentia e maquiavélica. Os casos fotografados pelo protagonista são os mais grotescos possíveis e, aos poucos, ele próprio é absorvido por esta decadência. O cineasta explora a ideia de que todo o ser humano tem um lado negro, mas o faz com tamanha lugubridade, que nunca fica claro a fronteira se estamos presenciando uma maldição ancestral ou um aspecto psicológico ou comportamental. Argento usa bem as ferramentas que têm e encerra com um final mórbido e digno para uma obra sua.

Dois Olhos Satânicos não é um filme convencional, mas prima pela reunião de dois grandes mestres do gênero e por apresentar estilos diferentes focados numa mesma proposta. Para qualquer fã de terror, o filme é uma experiência realmente gratificante, tanto pela parceria inusitada entre George A. Romero e Dario Argento quanto por sua excelência em trazer para a telona o universo fantástico de Edgar Allan Poe.