A edição número 50 de Surpreendentes X-Men (Astonishing X-Men) iniciou uma repercussão frenética na mídia com seu lançamento. A grande questão é o mutante Estrela Polar, que propôs casamento para seu companheiro de longa data, Kyle Jinadu – os dois estão juntos desde 2009. – É um assunto que, transposto para os quadrinhos, imediatamente ganhou a atenção de tudo e todos.
Estrela Polar, codinome do mutante Jean-Paul Beaubier, nunca teve foco real sobre ele porque não era um membro tão famoso dos X-Men. Na verdade, ele era membro da Tropa Alfa, o grupo formado pelo governo canadense para capturar o Wolverine (ou, como alguns chamam, a versão canadense dos Vingadores). Tempos depois, Estrela Polar se tornou membro dos X-Men, e um dos mais populares, participando justamente de uma das revistas que tem maior notoriedade nas aventuras do grupo mutante: Surpreendentes X-Men.
Ele foi um dos primeiros personagens de quadrinhos a se assumir gay com um sonoro “Eu sou gay”, na edição 106 da revista Tropa Alfa, em 1992. Na época, a Marvel deu aval para a revelação e não escapou do mesmo frenesi que está acontecendo agora com relação ao casamento do personagem.
A edição 106 esgotou em uma semana, mesmo a série Tropa Alfa não sendo muito popular na época. Até a irmã gêmea do mutante, Aurora, que tem várias personalidades, tinha sua função nessa questão do Estrela Polar, uma vez que uma de suas personalidades não tolerava o irmão, algo que refletia a própria intolerância que muitas pessoas têm com relação às questões LGBT.
Com o fim da série Tropa Alfa, Estrela Polar ficou mais esquecido no meio do monte de mutantes e supergrupos da editora, e menções ao fato de que era gay se tornaram igualmente escassas. Mas, vivemos outros tempos, quando (tento acreditar que) há uma tolerância maior e se discute mais sobre assuntos que antes eram evitados e chamados de “tabu”. Com isso, as aparições do personagem se tornaram mais comuns e o fato dele ser gay deixou de ser tão subjetivo como era nos anos 90.
Jean-Paul logo arrumou um parceiro e, em tempos nos quais as discussões sobre casamento gay andam em evidência, não espanta que a história do mais importante personagem gay da Marvel tenha chegado ao um de seus momentos mais importantes.
Vale ressaltar que Estrela Polar não é o único herói gay dos quadrinhos, é apenas um dos mais conhecidos. Existem vários personagens LGBT nos universos principais dos quadrinhos da Marvel e da DC e de outras editoras. Isso sem falar os inúmeros personagens gays nos animes e mangás, como as personagens Sailor Urano e Sailor Netuno do anime/mangá Sailor Moon.
Batwoman é outro exemplo: uma personagem da DC. Ironicamente, a heroína foi criada no passado para ser um interesse romântico do Batman com o objetivo de refutar acusações de que o Homem-Morcego seria gay (por causa do Robin). O fato é que a Batwoman ficou um tempo sumida, então, em 2006, a DC trouxe a personagem de volta como Kate Kane. Kate era gay e tinha um caso com Renee Montoya, ex-detetive da Polícia de Gotham. A Batwoman LGBT era um esforço da DC de diversificar nos tempos modernos e aproveitar temas que entraram em pauta de uns anos pra cá. Na época, a Batwoman gerou tanta repercussão quanto a do Estrela Polar em 1992. E provavelmente um casamento entre Kate Kane e Renee Montoya teria a mesma repercussão que o casamento de Jean-Paul e Kyle está tendo agora.
Mas por que esse burburinho todo agora?
Um dos grandes motivos, talvez, seja o fato do evento estar alinhado com uma discussão que vigora com força atualmente nos Estados Unidos, especialmente depois que o Presidente Barack Obama declarou apoio ao casamento gay, enquanto alguns estados norte-americanos têm proibido com rigidez a união entre pessoas do mesmo sexo.
Este alinhamento pode ser pensado ou apenas uma mera coincidência, não dá para saber ao certo, principalmente porque estas histórias costumam ser escritas e reescritas por meses (às vezes, anos) antes de passarem para as revistas. Mas é fato que a relevância das discussões sobre o assunto evidenciou ainda mais o acontecimento da Marvel.
O quadrinho, naturalmente, não é o mundo real, por isso consegue tomar mais liberdade para abordar certos assuntos. Num mundo cheio de mutantes com poderes extraordinários que estão sempre lutando para não serem vítimas de intolerância, questões como o casamento gay poderiam parecer (para alguns) problemas menores deste universo ficcional. Mas não deveria. No nosso mundo real, a união ainda é ilegal em muitos lugares. A Marvel deu um passo muito importante ao explorar o tema em suas páginas, talvez com a esperança de que haja, no futuro, um pouco mais de aceitação.
O momento também parece oportuno pelo próprio hype em torno das histórias em quadrinhos – especialmente depois da explosão de popularidade com o filme dos Vingadores. Nos últimos anos, aquele velho estereótipo de que “quadrinhos são coisa pra criança” perdeu espaço para um conceito mais amadurecido sobre super-heróis, seus poderes, personalidades e deveres. Essa mudança no pensamento coletivo tem permitido aos quadrinistas abordagens mais adultas em suas histórias, e isso inclui tocar em temas relevantes da nossa sociedade. Não é porque é ficcional, que precisa se distanciar do real.
Nessa hora, muitos talvez pensem no puro marketing que a repercussão pode atrair para a editora e que é só nisso que os envolvidos estão pensando: grana. Não somos tão ingênuos, é claro que a Marvel pensa na grana. Como toda a editora, a Marvel também é comercial, quer vender quadrinhos e ganhar dinheiro com isso. É claro que, apesar de tudo, a editora está interessada no marketing da situação. É claro que o setor de publicidade da Marvel pensou nas repercussões da iniciativa, e deve ter pensado ainda mais depois do depoimento do Presidente Obama.
Muitos também vão discordar desse tipo de proposta, de abordar a realidade em histórias que teoricamente deveriam servir somente ao puro entretenimento e nada mais. Mas isso é uma visão limitada quando se trata de qualquer forma de arte – e quadrinhos é arte!
A Marvel sempre foi de abordar temas políticos e sociais comuns ao nosso mundo e sempre refletiu questões pertinentes à nossa sociedade. Os X-Men são uma prova disso. Ok, muito da premissa original dos mutantes mudou com o passar dos anos, com cada vez mais personagens e as constantes alterações provocadas por megassagas... mas o ideal mutante continua presente nas histórias, em todos estes seres dotados de poderes especiais que são segregados pela sociedade por serem diferentes, mas que, mesmo assim, mesmo com toda a intolerância, lutam para serem aceitos. Parece familiar? Pois é, não surpreende que os X-Men tenham sido escolhidos para protagonizar o casamento gay mais importante da história dos quadrinhos: na edição 51 da revista Surpreendentes X-Men.
A Marvel fez o certo. Fez algo que poucos esperavam. Tornou ainda mais importante um personagem que sempre teve pouca representatividade. E parece estar tendo o cuidado necessário para tratar o assunto com o respeito que merece ser tratado. É um fato que pode, sim, promover discussões, reações e talvez até mudanças, nas histórias em quadrinhos, e nos pensamentos, quem sabe. A Marvel está novamente fazendo história. Depois de revolucionar os quadrinhos no cinema com Vingadores, a editora agora sacudiu o mundo das HQs. Deve-se respeitar isso.
Certamente, as milhares de opiniões envolvidas num acontecimento desses, seja de artistas seja de leitores, vão fervilhar as discussões e os questionamentos. O que não deve fervilhar é a intolerância, porque X-Men sempre foi sobre lutar contra a intolerância. É o que faz dos quadrinhos algo tão bom. Quadrinhos também são feitos para passar alguma mensagem, como todas as formas de arte. A Marvel continua tentando passar a sua. E eu fico feliz por isso.
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