A Fúria dos Reis (1998), George R. R. Martin.
Em tempos de série da HBO cortando cabeças, os livros de As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire) tornam-se ainda mais valiosos, porque enriquecem uma das tramas de fantasia mais impressionantes dos últimos tempos, seja da literatura, seja da TV.
A Fúria dos Reis (A Clash of Kings, 1998) é o segundo livro dessa grandiosa saga. Como todo bom segundo livro, consegue desenvolver as várias ramificações de sua história criadas anteriormente, aprofundar personagens já bastante tridimensionais e outros até então pouco explorados, consertar problemas do passado e arrumar problemas novos. E em meio às suas 650 e poucas páginas, A Fúria dos Reis consegue também padecer do mal dos segundos livros: é sensacional, mas não é tão épico ou impactante como o primeiro.
A saga continua onde o primeiro livro parou. Após a morte do Rei Robert Baratheon e a execução de Eddard Stark, uma guerra civil instaurou-se em Westeros. Surgiram cinco reis, todos lutando para tomar o Trono de Ferro, agora sob o domínio do herdeiro de Robert, o odioso Joffrey Baratheon.
Dentre os inimigos do novo rei estão os irmãos de Robert, Stannis e Renly. Stannis é um homem duro e amargurado, que viveu boa parte da vida exilado em Pedra do Dragão e acabou rendendo-se aos subterfúgios da perigosa Melisandre, a Sacerdotisa Vermelha. Renly não passa de um moleque brincando de guerra, mas por ser carismático e justo, consegue apoio da Casa Tyrell e forma o maior exército dentre os reis ascendentes. Noutro vértice está Robb Stark, o filho mais velho de Eddard, que foi proclamado Rei do Norte e deseja mais a cabeça de Joffrey do que sentar no Trono de Ferro. No Norte, os homens da Patrulha da Noite enfrentam forças sombrias que se erguem além da Muralha e precisam lidar com o poder crescente do Rei Além da Muralha, o renegado Mance Rayder.
Do outro lado do mar, Daenerys Targaryen continua sua jornada para reunir forças e voltar a Westeros. Como Khaleesi dos selvagens Dothraki (que ainda a seguem), Dany pretende reconquistar o trono que ela acredita ser dela por direito, com fogo e sangue. Mas precisa passar ainda por muitas provações – a maior delas é defender seus dragões recém-nascidos, agora alvo de cobiça por todos os que cruzam o caminho da jovem Targaryen.
George R.R. Martin continua mau. Ele mantém domínio excepcional sob todos os escopos de sua intrincada trama. A quantidade enorme de personagens e arcos trabalhados no livro leva a basicamente três histórias principais, margeadas por diversas sub-tramas exaustivamente detalhadas. Aqui, no maior mérito do autor, reside também sua maior falha. Martin é um escritor de mão cheia, que às vezes justamente enche demais a mão e perde um pouco o fio da meada. Como ele mesmo diz, o diabo está nos detalhes – e isso é ainda mais correto nesse segundo livro do que foi no primeiro. Eu gosto dos detalhes, gosto prazerosamente de desbravar as descrições dos cenários e das vestimentas e dos festejos, contudo, há de se convir que em alguns momentos, o velhinho escreve, escreve, escreve e não chega a lugar algum. Às vezes irrita.
Um exemplo é o arco de Bran Stark, que por estar aleijado, fica preso em Winterfell enquanto seus irmãos estão espalhados pelo mundo. Bran torna-se responsável pelo reino e cicerone dos netos de Walder Frey, enviados para Winterfell como parte do acordo feito por Robb com o Senhor da Travessia para atravessar as Gêmeas durante a Guerra dos Cinco Reis. Durante páginas e mais páginas intermináveis, a história de Bran resume-se a ser instruído sobre como cuidar do reino e do povo (e achar isso um saco), aturar as birras com os Frey, aturar as birras com o irmão mais novo Rickon, e aturar mais um pouquinho as birras com os Frey (pois é). E depois de toda essa birra infernal, chegamos à conclusão que essa parte da história não serviu efetivamente pra nada. O negócio com o garoto só começa a andar lá para o final e, mesmo assim, quando fica interessante, o livro acaba. Pra não dizer que Bran é um completo desperdício, a relação dele com a bárbara Osha e a habilidade especial dele cavalgar o lobo Verão enquanto sonha são muito relevantes – porém menos desenvolvidas do que poderiam por causa dos Frey e de Rickon (aliás, molequinho chato).
Apesar desses deslizes, até compreensíveis se levarmos em conta a quantidade de história, Martin oferece também momentos ímpares, como a forma como ele brinca com os vários pontos de vista de que dispõe, mostrando a Guerra dos Cinco Reis sob todas as perspectivas possíveis, tanto pessoais como geográficas.
Mesmo Daenerys, que vive em outro continente, não fica completamente alheia sobre o que está acontecendo em Westeros e a percepção dela da coisa toda é tão ingênua, tão infantil, mas tão determinada, que você não consegue ficar alheio a ela. Assim como acontece com Bran, a parte dela demora a engrenar, porém, é mais interessante, porque a personagem é mais carismática, mais forte. Daenerys é o despertar da alta fantasia num mundo até então desprovido da mística fantástica. KHALEESI. MÃE DOS DRAGÕES. Ela ainda vai tomar o que é dela com fogo e sangue, pode esperar. De longe, Dany é uma das personagens mais promissoras (e perigosas) da saga – perigosa porque sua jornada pode levá-la à destruição, não à salvação.
De volta a Westeros, Martin coordena seus pontos de vista pra mostrar todas as nuances mesquinhas de uma guerra, especialmente quando temos que lidar com um sujeitinho desprezível chamado Joffrey. O Rei Menino é tão bonito quanto sádico – seguindo as características clássicas da Casa Lannister – e é um adolescente brincando de ser rei (mais do que o Renly). É impressionante como ninguém consegue controlá-lo, nem a própria mãe Cersei, que aos poucos perde seu poder como regente por causa da incapacidade de contrariar os destemperos do filho.
Toda essa impulsividade é apresentada pelo autor como consequências da guerra. Há um momento especialmente genial no livro quando Joffrey sentencia um homem à morte com tanta raiva que se corta no Trono de Ferro (que é construído de lâminas derretidas e fundidas). Ele se corta com sua maior arma, uma amostra de como a guerra não foi feita para tolos irascíveis nem crianças mimadas. Martin pode não fornecer a redenção de vermos o mais infame personagem de sua saga cair perante espadas, mas é tão satírico ao representá-lo que nos presenteia com a ideia de um rei indigno ferido por seu próprio trono.
Pra sorte de rei infantil, apesar de tudo, há o lado dos que agem com frieza numa guerra. E no jogo dos tronos, Cersei Lannister domina. Ela pode não ter força contra Joffrey, mas não perde o charme e a língua afiada. Cersei impulsiona todas as maquinações e intrigas por trás do enredo. Por mais que Varys esteja lá dando azar, é ela quem manda, e usa todas as armas que tem para isso – a maior delas fica entre as pernas, como ela mesma diz. – Cersei só não é tão bem-sucedida porque tem que enfrentar um rival à altura, o MELHOR PERSONAGEM de todos, Tyrion Lannister.
Poucas crias da literatura conseguem ser tão apaixonantes quanto Tyrion. George Martin não se priva de ironizar seus próprios antagonistas por dentro, esbravejando ferozmente que aparência significa NADA perto da inteligência, principalmente em situações políticas ou belicosas. Mais do que isso, o autor fundamenta seu mais expressivo personagem e nos deixa de joelhos perante ele. Sim, porque se você não se curva ao Meio-Homem, você é um tolo. Como resultado, Tyrion tem os melhores arcos, as melhores ideias, as melhores falas, os melhores companheiros, os melhores momentos, as melhores atitudes, os melhores romances. E a forma como Tyrion contorna os planos de Cersei é de bater palmas.
O anão ainda ganha a oportunidade de experimentar a febre da batalha, um momento de violência e glória que se mostra a maior cartada de Martin em A Fúria dos Reis. A guerra para proteger Porto Real é morna, dividida em muitos pontos de vista que fazem com que o acontecimento perca seu potencial épico. Mas, nos últimos instantes, Tyrion toma a frente. Comanda a porra toda. E PUTAQUEPARIU MEIO-HOMEM. Pronto, George Martin nos faz torcer para os Lannister ganharem. Nós torcemos pros vilões. PROS VILÕES.
Manipular as emoções de uma história dessa forma é pra poucos. Na verdade, nesta segunda parte, Martin consegue tornar seus personagens tão mais humanos que fica impossível estabelecer maniqueísmos como heróis e vilões. Em A Fúria dos Reis, cada um tem sua motivação para lutar, trair, matar ou morrer. Os personagens têm códigos distintos de conduta e moral e são todos complexos, expostos em suas minúcias em cada capítulo ponto de vista. Nesse quesito, cada detalhe vale a pena. Porque você se identifica com eles.
Martin é assertivo até mesmo para lidar com questões delicadas do universo feminino, como quando Sansa Stark sangra e percebe que pode dar filhos a Joffrey, de quem ela está noiva, mas de quem ela também tem mais medo. Sansa aos poucos desabrocha e amadurece, torna-se uma personagem infinitamente mais interessante do que era no primeiro livro, e ainda assim mantém o ar de menina inocente, com um toque de delicadeza feminina raro de se ver nas mãos de um autor homem. É fantástico ver como o otimismo e a credulidade de Sansa vão aos poucos sendo minados e em como ela tenta extrair força disso. Curiosamente, num outro extremo, vemos a outra manifestação da força feminina do livro: Arya Stark. MINHA PERSONAGEM PREFERIDA sofre pra caramba nessa parte da história. Infelizmente, Arya também demora a engrenar. Mas, quando acontece, ela assume uma postura mais prática e brutal e, diferente de Sansa, reage aos acontecimentos. Quando Arya parte para ofensiva, transforma-se no Fantasma de Harrenhal. E quando ela espertamente engana um soldado e corta o pescoço dele com uma faca finalmente vemos porque Arya é ARYA. UMA STARK. A MELHOR STARK.
No mais, temos aos capítulos de Catelyn Stark, que amadurece como mãe e conselheira, mas que também continua com o péssimo hábito de estar no lugar errado na hora errada, o que só fode a vida dela; Sor Davos Seaworth, ex-contrabandista que virou cavaleiro de Stannis, um personagem promissor, que ainda não teve todo o seu potencial explorado e pode ganhar ainda mais terreno (ou mares) nos próximos livros; Theon Greyjoy, protegido da Casa Stark que ganha mais destaque nesse livro, mas demonstra ser apenas um menino fraco e mimado que só faz merda; e Jon Snow, que continua tentando encontrar seu lugar no mundo e, apesar de crescer na Patrulha da Noite, termina com uma possibilidade realmente intrigante para seu futuro. Sim, acredito firmemente que o destino de Jon Snow é tomar o lugar de Mance Rayder e tornar-se o sexto rei, o Rei Além da Muralha. E isso seria ÉPICO.
Aliás, divagando um pouco. Jon e Daenerys são os personagens mais deslocados de toda a saga. Até agora são os únicos que se mantêm mais distantes das intrigas políticas e das guerras do mundo. São parte dos fatos, mas minimamente atrelados a eles. Mas são os que parecem mais envoltos pela jornada de crescimento e descoberta dos heróis, uma jornada que deve levá-los ao ápice da saga. Talvez até mesmo juntos. Muitos se perguntam se há protagonistas na história de George Martin. Sim, há. São eles dois. O bastardo e a exilada. Aqueles que podem mudar o mundo, como é visto neste segundo livro. Que podem tornar-se Rei do Norte e Rainha de Westeros. Os verdadeiros reis. Jon e Daenerys. Gelo e Fogo. Se aliados ou inimigos, só o tempo dirá.
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