Django Livre (2012), Quentin Tarantino.
Quentin Tarantino está de volta em sua melhor forma num filme faroeste sobre escravidão terrivelmente divertido e violento. Tarantino é muito bom em um tipo de euforia psicodélica e estilosa que só ele traz para o cinema.
Django Livre lembra exatamente o Tarantino dos velhos tempos, aqueles saudosos tempos de violência de Pulp Fiction e Cães de Aluguel. O filme é uma tremenda crítica à escravidão e ainda toma formas sutis de poema épico ao se aproveitar de aspectos da mitologia nórdica para exaltar a coragem heroica de um homem determinado a salvar sua amada, embora Django Livre não seja tão trágico como o conto nórdico A Saga dos Völsungs.
Detalhe curioso é a forma com o filme se apropria do poema em suas entrelinhas, inclusive sendo verbalizada a inspiração em dado momento da história. No conto nórdico, Brünnhilde é uma Valquíria transformada em mortal e aprisionada num castelo, no centro de um círculo de fogo. O herói Siegfried precisa invadir o castelo e atravessar o círculo de fogo para resgatar sua amada; durante a saga, Siegfried mata o dragão Fafnir e se banha no sangue do monstro, tornando-se invulnerável.
No filme, Django precisa invadir a Candyland (seria um castelo de doces?!) para salvar sua amada das mãos de um dos maiores escravagistas do país, que é cercado de fiéis comparsas dispostos a impedir o avanço do herói (círculo de armas de fogo?!). Mas Django persiste, e se banha no sangue de seus dragões até que se torne invulnerável em seu objetivo — até que se torne uma lenda.
O personagem-título Django (Jamie Foxx) é um escravo que foi libertado e se tornou mercenário ao lado do caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz) — que pode ser considerado uma espécie de sucessor conceitual às avessas do Hans Landa de Bastardos Inglórios e ainda carrega o sobrenome de uma supostamente falecida Paula Schultz de Kill Bill. Django deseja libertar sua esposa Broomhilda (Kerry Washington), que está presa na fazenda do escravagista Calvin Candie (Leonardo DiCaprio). Porém, Candie não é o único obstáculo de Django, ele também precisa lidar com Stephen (Samuel L. Jackson), um escravo obediente e ardiloso que é tão escravagista quanto o dono da Candyland.
O dentista-caçador-de-recompensas Dr. King Schultz, de Christoph Waltz, é um elemento curioso do filme. Ele tem um cavalo chamado Fritz, e é divertido cada vez que ele se apresenta pra alguém e apresenta o cavalo logo depois. Quando lembramos de Waltz como Hans Landa de Bastardos Inglórios, e o vemos aqui como Dr. King Schultz, que também é alemão, parece que estamos vendo o desenvolvimento de uma espécie de arquétipo de personagem. Landa era um vilão conhecido como “Caçador de Judeus” e não tinha compaixão na hora de matar os judeus que caçava, mas desprezava o regime no qual vivia porque considerava seu comandante (no caso, Hitler) um palhaço destinado ao fracasso. Schultz é (algo como) um herói que trabalha como caçador de recompensas e que não tem compaixão na hora de matar os bandidos que caça, mas despreza o regime no qual vive porque considera os escravagistas palhaços destinados ao fracasso. Schultz parece ser a redenção de Landa, algo que se torna ainda mais visível quando comparados os desfechos dos dois personagens em ambos os filmes. Schultz é impiedoso como Landa, mas luta por razões mais justas. Schultz poderia até mesmo ser um antepassado/descendente conceitual de Landa, porque embora a Segunda Guerra Mundial tenha acontecido décadas depois da Guerra Civil Americana, Django Livre meio que funciona como uma continuação de Bastardos Inglórios. E um destaque para Christoph Waltz, que manda muito bem no papel.
Na verdade, todos os atores estão perfeitos em seus papéis. Samuel L. Jackson é outro que merece destaque. Seu retrato como o escravo envelhecido que serve Candie como um cão fiel é desprezível na medida certa, e a caracterização fica ainda melhor quando ele repete as últimas palavras ditas por Candie e adiciona “HUMM, é isso mesmo!” — ideia que partiu do próprio Jackson durante as gravações, um cacoete que torna o personagem ainda mais ameaçador. Pior do que o homem que tira sua liberdade, é o homem que pode ser livre e não aceita a ideia de liberdade.
Quentin Tarantino dá seguimento à sua “trilogia histórica”, iniciada com Bastardos Inglórios. E se antes o cineasta se mostrou empenhado em um discurso contra o Nazismo, agora ele explora outro grande mal da humanidade: a escravidão nos tempos pré-guerra civil norte-americana. Tarantino aproveita o tema para prestar homenagens (como ele sempre gosta de fazer em suas obras) aos clássicos filmes de faroeste, como o Django original (de 1966), dirigido por Sergio Corbucci e estrelado pelo ator Franco Nero (e o ator ainda faz uma participação no filme de Tarantino), ou ainda ao japonês Sukiyaki Western Django, de Takashi Miike, e ao romance Quarenta Chibatadas Menos Uma, de Elmore Leonard.
Django Livre é Quentin Tarantino em uma loucura sangrenta e verborrágica, que pode ser cruel como uma chibatada, mas refinada como sangue respingando numa plantação de algodão. E isso com alguma dose de humor satírico.
Numa hora, você se pega rindo com a sátira safada à Ku Klux Klan e seus capuzes brancos pontudos. Noutra, estamos enjoados e revoltados com um escravo sendo dilacerado por cães. O filme deixa claro até que ponto pode chegar a crueldade da escravidão e do racismo, que representam o que há de pior na História humana.
Django, o escravo liberto que explode tudo para salvar sua amada, não é uma redenção à crueldade de séculos. É pura raiva que converge e explode de um único homem. Ele é sem dúvida um dos melhores personagens do cinema. E é um personagem poderoso como o filme que leva seu nome. Django Livre é fantástico. Além disso, é um belo de um faroeste spaghetti.
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