O Alienado (2012), Cirilo S. Lemos.
Realidade é apenas uma questão de ponto de vista. Toda uma tradição da ficção científica de autores como Philip K. Dick até filmes como Matrix possui como premissa básica o questionamento sobre a veracidade do que temos diante dos nossos olhos. Como saber o quanto neurônios e sinapses dentro da mente humana conseguem traduzir como “real”. Afinal, não há tradução sem perdas.
Mas um autor brasileiro agora entrou para esse time de autores: Cirilo S. Lemos, com seu romance O Alienado, publicado em 2012 pela Editora Draco. Nele, somos apresentados a Cosmo Kant, um operário habitante da Cidade-Centro que, após sofrer alguns apagões de consciência, se vê perseguido pelos Metafilósofos, uma organização com ares de teoria da conspiração que parece querer algo que estaria dentro de sua mente.
Cosmo também pretende ser escritor, e está escrevendo um romance de ficção científica que trata justamente sobre os Metafilósofos. Assim, temos uma narrativa em três tempos, onde é apresentada a infância de Cosmo, sua vida como adulto e os escritos incompletos de seu romance. Acontece que, a partir de determinado momento, as narrativas se encontram, quando um dos personagens de seu livro aparece na sua frente, tenta prendê-lo e ainda se apaixona por sua esposa.
Não dá pra contar mais sem estragar o livro, mas podemos falar de suas referências, que são muitas. Percebe-se a influência tanto de autores como Franz Kafka, Neil Gaiman e China Miéville, e indo até o roteirista de quadrinhos Grant Morrison e sua obra Os Invisíveis. Não há menção direta, o leitor que conhece o trabalho desses autores vai pescando as citações durante o livro.
Um parêntese em relação às referências. Falei de Matrix antes, e é sabido que os irmãos Wachowski foram influenciados pela obra do francês Jean Baudrillard, que (muito resumidamente) defendia a ideia de que vivíamos diante de simulacros e não sabíamos mais diferenciar estes do que era real. A crítica dele ao filme é que Matrix havia abordado isto de forma separada: existe o mundo real (Zion) e o mundo simulacro (Nova York do ano de 1999), quando na verdade, segundo Baudrillard, as duas coisas são misturadas em um só mundo.
Por que falei isso tudo? Porque em O Alienado, a realidade e o simulacro SÃO o mesmo mundo, e tal qual a teoria de Baudrillard, nem o leitor nem o protagonista sabem fazer a diferenciação, levando todos a um labirinto sem aparente solução.
Parece complicado, mas não é. Cirilo possui uma habilidade narrativa surpreendente e, apesar de toda a aparente loucura, o leitor não se confunde em momento algum. O mistério dura até o último parágrafo, e termina com maestria. O livro flui com facilidade, e diverte bastante, ao mesmo tempo em que nos envolve emocionalmente.
A única ressalva é que as personagens femininas não são tão bem desenvolvidas. Principalmente Maria Cecília, a esposa de Cosmo Kant, que possui papel fundamental na trama, e está sempre aparecendo de forma idealizada. O final até justifica isso, o que leva a crer que foi uma opção consciente do autor. Mas não é algo que chegue a incomodar, diferente da revisão textual do livro, que deixou passar vários errinhos.
Cirilo já havia publicado alguns contos em antologias, onde chamou a atenção pela qualidade de seu trabalho. Este é seu primeiro romance, e conseguiu mostrar que veio para ficar. Vale a pena observar sua carreira de perto, pois parece que um grande autor nacional do gênero fantástico está surgindo.
Por outro lado, ninguém do fandom até hoje conheceu Cirilo, o que dá margens aos boatos se ele existe ou não. Nesse caso, pode ser que o livro não passe de uma mensagem escrita por algum hacker de realidades, tentando nos avisar de que tudo em que acreditamos não passa de uma mentira. Vamos fazer como os metafilósofos, e ficar de olho nele.
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