Mad Max: Estrada da Fúria (2015), George Miller.
Os filmes de Mad Max foram idealizados, produzidos e dirigidos por George Miller e no passado, não apenas levaram Mel Gibson ao estrelato, como também conseguiram criar uma mitologia impressionante graças à visão de Miller para um futuro pós-apocalíptico cada vez mais desesperador. Passadas três décadas desde o último filme, o problemático Mad Max: Além da Cúpula do Trovão, Miller finalmente retorna a este mundo com um novo ator no papel, Tom Hardy, e aproveitando os avanços em efeitos visuais para reapresentar seu universo de uma forma ainda mais enlouquecedora, sem esquecer de todo o potencial que efeitos práticos ainda têm a oferecer para qualquer grande filme de ação. Cerca de 80% do filme foi filmado no deserto, sem efeitos de computação gráfica.
Mad Max: Estrada da Fúria é o sonho arenoso de uma realidade ensandecida e desoladora. Até certo ponto, vislumbra o medo do que podemos esperar do nosso futuro, do caminho que estamos tomando e aonde vamos chegar se as coisas continuarem tão desgovernadas como um carro cheio de espinhos. Miller demonstra que não perdeu a agilidade e o olhar afiado com a idade; pelo contrário, ganhou uma experiência invejável por muitos artistas jovens. Porque o que ele faz nesse filme é pura arte, não há outra forma de descrever. Esse senhor hardcore de 70 anos mergulha em seu mundo com vigor e energia juvenil, mantendo pleno controle sobre a visão experiente que tem de sua obra. Poucos filmes conseguem estabelecer um equilíbrio tão solene entre o velho e novo.
Como um diretor à moda antiga, ele aplica a visão de uma época mais clássica do cinema de ação, com um tempo próprio para cada tomada e cortes rápidos que empurram a câmera o tempo todo para o mais perto possível da cena (como por exemplo, quando a marcha de caveira metálica é engatada), em um filme com fortes características de blockbuster moderno. Melhor de tudo é que ele não tenta criar aquele sentimento de epicidade que vai crescendo e crescendo até culminar em um final apoteótico e avassalador. Mad Max é uma prova de que isso não é o essencial em um filme para que ele seja emocionante. Ao tocar em questões sobre redenção e revolução, Miller mostra que a técnica na realização cinematográfica pode ir além da computação gráfica, convidando os cineastas de ação a se redimirem e revolucionarem.
Mad Max: Estrada da Fúria é, sobretudo, um filme de ação e perseguição divertido, o tempo todo frenético, sem parar um só instante, sem nos dar tempo para tomar um mínimo de fôlego. Miller dá uma lição de como manter um filme em pleno movimento, sem perder o ritmo ou a coerência. Isso somado a um cenário estranho e impressionante, com uma visão deturpada de sociedade que vai fundo no desespero humano; talvez um pouco estimulado pelo fato de Miller também ser um médico, algo que pode oferecer a uma pessoa uma visão mais preocupante e esclarecida sobre muitos aspectos da vida. Ele explora o que há de mais sinistro e disforme na natureza humana sem se deixar privar pelo medo que possa chocar corações mais fracos com suas imagens. Mad Max não quer passar a mão na nossa cabeça. Insanidade é o conceito.
Ao mesmo tempo, o pesadelo apocalíptico dá indícios de uma identificação com a cultura pop, como com os Warboys meio-vivos que cultuam volantes de carro como divindade, acreditando que na morte irão para Valhala se fartar em um McBanquete, lutando por um vilão que comanda mentes fracas pela força e detém o poder sobre o bem mais preciso desse mundo desértico, a Aqua Cola. E quando chega a certeza de que Valhala está próxima, eles são enaltecidos pelo poder do cromo em suas bocas. Para esse visual alucinante, uma trilha sonora alucinante.
O ritmo, a edição, a música de Junkie XL criam respostas emocionais espetaculares em cena. A primeira perseguição do filme, com os homens de Immortan Joe indo atrás de Furiosa já é uma das sequências de ação mais marcantes do cinema, e quando achamos que não poderia ficar melhor, Mad Max se supera com carros customizados bizarros, carros-tanque, caminhões de guerra, leite materno, lanças explosivas e uma caminhão imenso repleto de alto-falantes onde homens que tocam tambores e uma aberração toca insanamente uma guitarra que cospe fogo. Esse personagem sozinho é uma das coisas mais sensacionais do cenário, e toda a vez que ele aparece, a trilha sonora instrumental segue junto com os tambores e o guitarrista, num mix que mostra ainda mais harmonia que o filme alcança dentro de sua insanidade. E isso é apenas uma pequena parte da grande loucura que surge em cena. A emoção da ação e a profundidade da ficção científica se misturam em uma surpreende história em que os elementos mais importantes são: os personagens.
Immortan Joe é uma figura medonha, o símbolo de uma terra envelhecida e decrépita, que se esconde atrás de máscara de respiração esquelética e ao mesmo tempo veste uma armadura transparente com adornos de engrenagens que nos faz pensar nele como uma espécie de Xogum heavy metal pós-apocalíptico. Como soberano, ele é cruel e comanda com mãos de ferro, mas se ressente por não ter filhos homens perfeitos que possam herdar seu “xogunato”, explorando aspectos de uma sociedade patriarcal e belicosa, na qual o único papel da mulher é oferecer filhos fortes para o soberano, criá-los e alimentá-los. Hugh Keays-Byrne interpreta uma perfeita representação do mal que assola esse mundo, e um detalhe importante é que ele participou do primeiro Mad Max, 1979, como o vilão Toecutter.
Como reflexo de um mundo cada vez mais desesperado e desesperador, Miller atualiza as necessidades de seu futuro em que a guerra pela sobrevivência é a guerra por água e petróleo. Em meio ao apocalipse punk, Max é reinventado como o guerreiro da estrada que busca seu próprio caminho, impossível de se distinguir da máquina que pilota, enquanto luta para superar os fantasmas de um passado trágico. Tom Hardy o constrói um carisma robusto, do tipo que é impossível não gostar dele ou torcer por ele; e como bônus ainda acrescenta pequenos detalhes que fazem dele um cara falível que é divertido de se conhecer. Max não é um herói de ação, e o tempo todo sofre por isso e fica na merda por isso. Ele é capturado, transformado literalmente em “bolsa de sangue”, chutado, socado, jogado numa tempestade de areia horripilante, arremessado de carros e caminhões, e tudo o mais que se possa imaginar. Ele parece um desastre, como o mundo onde vive. Mas quando Miller o transforma em herói, ele concede peso a seus atos, sem nos mostrar mais do que o necessário.
Quando Max cresce para ser o herói é quando o filme faz sua maior jogada, tirando-o do foco e ampliando a importância de Imperator Furiosa, uma mulher cujo objetivo é encontrar o lugar onde acredita que será possível viver em paz, longe daquele mundo desgraçado e violento. Furiosa é a esperança e o desejo que as próximas gerações não sejam distorcidas por aquela realidade desoladora; e ela luta por isso com tudo que tem. Charlize Theron, em mais uma demonstração de sua incrível qualidade artística, nos revela uma mulher que se define na ação. Ela é forte, ríspida, decidida, com camuflagem negra na testa e uma prótese mecânica no lugar do braço, e nunca, em momento algum do filme, deixa de ser feminina. Furiosa é uma mulher lutando para proteger outras mulheres de serem meros objetos, parideiras e escravas sexuais.
Noutra grande jogada do filme, o poder de Furiosa nos é mostrado por algo além da perícia nas cenas de ação ou da força de caráter da personagem. Ela é complementada por cada uma das mulheres que ela luta para salvar; e essas mulheres lutam com ela, cada uma à sua maneira. Rosie Huntington-Whiteley, Zoe Kravitz, Courtney Eaton, Riley Keough e Abbey Lee têm suas próprias maneiras de encarar o objetivo e a fuga, e cada uma reage de uma forma própria às circunstâncias à medida que ela aparece. Elas não são apenas coadjuvantes a serem atacadas ou ameaçadas. Como elas mesmas dizem, não são coisas. A relevância delas, para Furiosa e para a narrativa em si, é que torna a missão muito mais urgente e impactante. Furiosa é quem vai salvar essas mulheres. Não Max. Ele é um aliado ocasional, inesperado, que cruza o caminho delas enquanto tenta fugir de uma situação difícil e sobreviver. Isso nos leva sutilmente ao primeiro Mad Max. Como um homem em busca de redenção por ter falhado com sua esposa e filho, Max encontra esperança na pureza da missão dessas mulheres, lutando para impedir que elas sofram o mesmo destino da família que ele não pôde ajudar no passado. Quando a Esplêndida Angharad grita “Então quem matou o mundo?”, sabemos exatamente a quem ela e as outras estão se referindo. Os homens mataram o mundo, e os que não o fizeram diretamente, de alguma forma permitiram que acontecesse ao não tomar partido no lugar certo e na hora certa quando deveriam.
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