Jessica Jones

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Jessica Jones

Jessica Jones (2015), Melissa Rosenberg.

Alias, HQ criada pelo escritor Brian Michael Bendis e o artista Michael Gaydos, em 2001, teve 28 edições e pertencia ao selo Marvel Max, que era focado em histórias mais adultas no Universo Marvel. Não é à toa que a série Jessica Jones é a história da Marvel de abordagem mais adulta até agora no cinema e na televisão. Como uma história mais adulta, a Netflix não se poupou de abordar temas sérios e importantes na série, ao mesmo tempo em que construiu toda uma atmosfera de filme noir misturada com suspense de perseguição obsessiva para explorar a questão da violência contra mulher e do empoderamento feminino (o direito à mulher de ser e fazer o que quiser como quiser quando quiser, que muitas vezes lhe é negado por convenções sociais frequentemente veladas de uma sociedade que cresceu escorada em pontos de vista masculinos). Jessica Jones não vem simplesmente para assistirmos a mais uma história de super-heróis do Universo Cinemático da Marvel; vem para pensarmos sobre o que ela tem a nos dizer.

Jessica Jones (Krysten Ritter) é uma ex-super-heroína que agora trabalha como detetive particular em Nova York investigando casos de desaparecimentos e adultérios enquanto tenta lidar com questões do passado. Por causa do trauma que sofreu, ela se tornou uma mulher fragilizada e paranoica, que prefere viver sozinha e afastada dos outros. As únicas pessoas com quem Jessica tem contato mais prolongado é a melhor amiga, Trish Walker (Rachael Taylor), a advogada que lhe fornece casos, Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss), e o vizinho drogado, Malcolm (Eka Darville). Enquanto investiga um caso, acaba se envolvendo com Luke Cage (Mike Colter), com quem divide uma história dolorosa embora ele não saiba disso. Jessica vive um dia de cada vez, fazendo seu melhor para sobreviver por conta própria. Essa não é a história de uma super-heroína; é sobre a mulher por trás dos super-poderes.

Existem momentos de descontração? Existem. A série tem momentos divertidos, especialmente no início quando Jessica e Luke Cage estão se conhecendo e descobrindo um ao outro, com os super-poderes e tudo mais (bastante tudo mais, diga-se de passagem). Essa dinâmica divertida entre os personagens cria simpatia pela relação a ser construída de um dos casais mais icônicos da Marvel nos quadrinhos. São alguns momentos de alívio em uma história marcada por tragédias e sofrimento.

Por sorte Jessica também conta com uma amiga para enfrentar seus traumas. Patricia “Patsy” Walker é um elemento importante, pois uma pessoa como a Jessica Jones às vezes precisa de uma amiga, seja para protegê-la, seja para aconselhá-la, seja para dar um abraço carinhoso em um momento difícil, seja para lutar lado a lado quando é necessário. Patricia (também chamada de Trish) também explora um pouco questões envolvendo outro tipo de trauma: o abuso de pais que projetam expectativas surreais sobre os filhos, algo que pode ser ainda pior quando se trata do mundo das celebridades e do espetáculo que não poupa nem crianças. Patsy Walker, nos quadrinhos, era estrela de uma série de comédia romântica adolescente e apareceu pela primeira vez na revista Miss America #02, de 1944. Na época, era publicada pela Timely Comics, precursora da Marvel Comics. Mais tarde ela se tornou a super-heroína Hellcat na revista The Avengers #144, de 1976. A série da Netflix aproveita o fato de a personagem, nos quadrinhos de antigamente, ser ruiva e parte de uma comédia romântica para apresentá-la como uma celebridade mirim do passado que usava peruca ruiva (uma espécie de Hannah Montana); com isso, insere de forma magistral uma das mais antigas personagens da Marvel no universo da televisão e do cinema.

Pela primeira vez o Universo Cinemático da Marvel trata a percepção dos superpoderes como “maldição” de forma mais profunda e incisiva; em outras séries e filmes da Fase Dois essa percepção está presente, mas sempre tratada de forma mais amena e sutil. Agora o superpoder é mostrado não apenas como um “dom” que pode beneficiar e ajudar as pessoas; é algo que pode machucar com crueldade e provocar danos físicos e/ou mentais irreversíveis. Não é à toa que a contagem de corpos (e de traumas) na série é grande. Nenhuma vítima ou horror é esquecido no panorama desolador das coisas. Os superpoderes são analisados em uma escala mais íntima e pessoal, diferente da percepção mais ampla (e aventuresca) de Vingadores ou Agents of SHIELD. As ações e os traumas provocados por eles sempre têm consequências, para quem os usa e para todos ao redor, amigos ou inimigos. A responsabilidade por cada ato é maior até mesmo do que o Tio Ben poderia ter previsto.

Essa é uma das grandes vantagens da televisão atualmente; a possibilidade de abordar temas com um olhar mais adulto, em contraponto a abordagem mais juvenil do cinema para todos os públicos. A Netflix entende o poder que possui e não se priva de usá-lo. Isso é maravilhoso.

As comparações com a série anterior da Marvel são inevitáveis, claro. Demolidor abriu um precedente e se tornou um parâmetro para tudo o que virá até Defensores. Mas não significa que Jessica Jones seja melhor ou pior do que Demolidor; as duas na verdade são igualmente grandes, cada uma a sua maneira. Enquanto Demolidor percorre as ruas sujas em busca da corrupção que está à vista de todos na tentativa de erradicá-la, Jessica Jones mergulha em uma luta contra demônios mais internos e dolorosamente imperceptíveis. Olhar para o enredo pensando que é apenas sobre super-heróis por ser da Marvel é olhar apenas para a superfície; assim como o problema que a série aborda vem sendo, durante muito tempo, percebido apenas em sua superfície e encarado com uma naturalidade tão mórbida que dá medo. Há uma razão para o grande inimigo, Kilgrave, ser mantido longe da nossa percepção, oculto, durante boa parte da temporada. Aqueles que olham para Jessica Jones e pensam que, como série de super-herói, deveria ter apenas diversão talvez não percebam que é esse pensamento que leva o problema da violência à mulher a ser encarado como algo natural; acreditando que a diversão justifica não olhar para questões sérias e importantes (é quando surge o clássico argumento: “você não devia se preocupar com isso, eles estão só brincando”).

Por outro lado, Jessica Jones expressa em um pensamento simples uma máxima de tudo o que representa: “não se esqueça de sorrir”. Enquanto a brincadeira é feita, não importa quão agressiva seja, a mulher é obrigada a sorrir e deixar para lá. Isso é o que todos estão sempre dizendo para elas. Sorrir é uma expressão de diversão e contentamento; mas às vezes é apenas um reflexo do desespero. Essa é a dura realidade que muitas mulheres precisam enfrentar no dia a dia e que o enredo é tão poderoso em mostrar.

A série é mais lenta que o habitual (sim) e se arrasta no desenvolvimento de sua história (também), mas isso parece estar mais a serviço da narrativa do que ser simplesmente um artifício para estender a trama por treze episódios. Imagina como é, para uma mulher que sofreu uma agressão, a sensação de viver esperando pela próxima agressão, o processo psicológico e doloroso que ela precisa enfrentar em um dia a dia que parece se estender por uma eternidade. Imagina como é passar o dia olhando apreensiva de um lado para outro, procurando alguém que está perto sem ser visto, torcendo para passar o tempo que nunca passa, esperando para escapar do labirinto de ruas familiares que lhe servem falsamente de refúgio. Essa é a sensação que a série passa, o tempo todo, e é algo que provavelmente não seria tão bem construído em um filme de duas de duração. O poder que a televisão (ou o streaming) oferece é desenvolver uma ideia até seus limites de forma gradual. A Netflix já mostrou seu potencial para isso (e para mudar paradigmas conceituais e audiovisuais) anteriormente com Sense8, e agora se aproveita mais uma vez de suas ferramentas e seu modelo para construir algo fascinante.

Sobre esse fundo é que funciona o grande antagonista da trama e, agora, o maior vilão já criado para o Universo Cinemático da Marvel. Kilgrave se desenvolve dentro de um mundo impulsionado pelas ações e reações dos problemas de cada um, que se chocam constantemente; todos possuem problemas e a tendência de olhar para os próprios problemas em detrimento do dos outros apenas cria mais problemas, em um ciclo vicioso que se torna cada vez pior (e mais agressivo) com o tempo. Kilgrave é uma consequência potencializada disso. Ele não é simplesmente um vilão, é algo mais horrendo, o que há de pior no espírito humano, um mal que se entranha na sociedade sem ser percebido e que manipula para não ser notado. Ele está por aí, como um homem comum, oculto no meio da multidão enquanto recebe por SMS dezenas de fotos de sorrisos sofridos.

Os momentos noir, quando Jessica está sendo a detetive particular perseguindo alguém prestes a cometer um deslize, o som do sax ao fundo e a decadência social e humana ao redor, oscilam com os momentos do suspense de ser perseguida e vigiada por alguém obcecado a ponto de cometer as maiores atrocidades (e achar que está tudo bem no final). Porque, para Kilgrave, o que ele faz é natural. Ele acredita nisso, e qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

O vilão é livremente inspirado em Zebediah Killgrave, o Homem-Púrpura, um homem de extrema importância no passado de Jessica Jones. Nos quadrinhos, quando Jessica ainda atuava como a heroína Safira, ele a sequestra e mexe com a mente dela, obrigando-a a fazer coisas horríveis enquanto permanecia sob seu domínio. Quando finalmente se liberta, Jessica acaba sofrendo um acidente grave que a deixa em coma. Quando acorda, traumatizada por tudo que aconteceu, ela decide abandonar a vida de super-heroína e se torna detetive particular. A série pega a ideia principal e usa para abordar a temática do abuso contra a mulher de uma forma que muitas histórias têm receio de abordar. Até mesmo a associação do controle mental sobre Jessica com o estupro é verbalizada de forma explícita, algo que nem mesmo a HQ Alias tinha coragem de assumir abertamente em suas páginas. Nos quadrinhos isso era mais implícito. Mas nós vivemos numa época em que se grita contra o assédio e a agressão à mulher; mostrar e dizer com todas as letras é mais do que necessário. A dinâmica entre Kilgrave e Jessica colide com a de Luke e Jessica. Ambas as relações expressam o maior conflito da série: a importância da diferença entre tomar decisões à força e tomar decisões por livre vontade.

Jessica Jones é a heroína com super força, a pura representação do poder feminino, a mulher empoderada por si só. Enquanto Kilgrave é a violência que contagia como um vírus a ponto de outros repetirem a mesma violência (agressões e assédios que se alastram como praga), Jessica é a cura que contagia com super força a todas (e todos) que nela se inspiram — mesmo aqueles que acreditam ser invulneráveis. — Esse é seu verdadeiro superpoder. Ela inspira por seus atos de heroína relutante. Porque uma mulher é uma heroína relutando (e lutando) para mostrar o que há de mais cruel em um mundo de mentes controladas por um vilão quase imperceptível. Ela luta uma batalha diária para ter controle sobre sua vida e sua voz, suportando tudo sozinha (com ou sem álcool, com ou sem poderes) quando deveria fazer um escândalo. Não deveria ser assim. Nunca deveria ser assim. Por isso não se trata simplesmente de poder; trata-se de empoderar.