O Caminho do Louco (2016), Alexandre Mandarino.
“Não” é a palavra mais difícil de ser dita. Quantas vezes seguimos no piloto automático, infelizes, sobre determinada situação ou mesmo sobre toda nossa vida, e ainda assim relutamos em mudar, buscando mil desculpas para justificar nossa própria falta de coragem.
Pois André Moire, o protagonista de O Caminho do Louco, primeiro volume da trilogia Guerras do Tarot, finalmente teve essa coragem. Jornalista que trabalhava numa grande redação, ele é despedido e resolve que não quer mais seguir em frente. Joga tudo para o alto e vai viajar, mesmo sem grana, para conhecer os lugares que sempre quis. Loucura, é nosso primeiro pensamento. Não à toa, Moire é o novo Louco na organização secreta conhecida como O Tarot.
Trata-se do excelente romance de estreia de Alex Mandarino, que já chega mostrando ao que veio. A estrutura do universo que ele criou lembra muito a da HQ Os Invisíveis, de Grant Morrison, com duas organizações secretas combatendo para definir o destino da humanidade, uma de cunho anárquico e outra defendendo a ordem. Porém, a narrativa aqui é mais clara e concisa, com as referências à cultura pop servindo como um brinde aos leitores, nunca simplesmente gratuitas ou impedindo o entendimento do que está efetivamente acontecendo.
Muitas vezes as citações não são literais, mas na maneira como a cena é narrada. Por exemplo, todas as perseguições de carro no livro são dignas de GTA – e garantem os momentos de ação mais empolgantes do livro.
A jornada de Moire, é importante dizer, não segue os passos da jornada do herói. Embora a trama tenha muito de aventura, fantasia e ação, o protagonista vive uma jornada de autodescoberta, ao mesmo tempo em que vai conhecendo a organização para a qual foi convidado. Assim, há também muito debate e reflexão sobre qual nosso papel no mundo, porque temos medo de abraçar a vida e seguir com nossos verdadeiros sonhos. A magia é mostrada num estilo xamânico, de entendimento do Homem com a Natureza, e não como mera ferramenta para resolução de um problema (e justo quando escrevo isso um pássaro pousa na minha janela e começa a cantar…).
Os personagens coadjuvantes também são bem construídos, alguns com profundidade e contradições que nos fazem querer saber mais sobre eles. Patrick Mann, O Imperador, é o bilionário que garante o sustento financeiro da organização, e com ele podemos esquecer todo o maniqueísmo sobre a luta de classes. O mesmo vale para Natacha Lalique, A Imperatriz. E mesmo os com poderes mais fantásticos, como Pat O’Rourke (A Sacerdotisa) e François Zantray (O Mago), possuem um toque humano que os faz parecerem com alguém que você poderia realmente conhecer. Aliás, este é um dos charmes do livro: todos os personagens poderiam ser seus amigos.
Outro ponto essencial é a relação dos personagens com o espaço em que vivem. As cidades exercem influência real nos personagens, que são obrigados a repensarem o modo em que vivem. A ocupação do espaço público, a disposição das ruas que aos poucos atendem mais aos carros do que aos homens, e dificultam a arte de flanar e seus encontros fortuitos, tudo isso precisa ser quebrado para que outra visão de vida seja possível. Por isso, não é gratuito que boa parte da trama se passe em Paris ou em algum lugar da França. É como se Mandarino reivindicasse uma retomada de Charles Baudelaire e Oscar Wilde para o século XXI. O túmulo destes acaba exercendo uma função mística e de iniciação para Moire, que parece servir como despertar também para o leitor.
Talvez em alguns momentos as reflexões dos personagens pareçam grandes divagações, com certo tom professoral, principalmente nos diálogos com O Imperador. Mas o autor sabe não se esticar demais nestes pontos, e inserir alguma urgência ao que acontece com o protagonista.
Paralelo a tudo isto, temos ainda uma trama de mistério, digna de Agatha Christie, envolvendo documentos religiosos, que serve como fio condutor para a trama de aventura, se interligando aos poucos com o que acontece com o protagonista.
Embora até funcione como um livro solo, dando uma conclusão ao que é mostrado de forma mais imediata, ficam tantos os mistérios ainda por resolver, que é impossível não querer que chegue logo o segundo livro.
Diferente do que temos normalmente no mercado de fantasia e ficção científica, a divisão em uma trilogia não está aqui para emular os grandes sucessos do formato. Trata-se mesmo de uma grande trama sendo montada meticulosamente, e que não caberia em um único livro. O estilo do autor, seus diálogos e reflexões, tudo isto mostra um trabalho já maduro, embora de romancista estreante. Mandarino tem um bom domínio do universo em que criou, onde nada aparece por acaso. Além disso, tem estilo próprio, sabe escrever bem e dar o ritmo certo para as cenas (o fato dele também ser músico parece ter ajudado bastante nisso).
Portanto, não espere de O Caminho do Louco apenas mais um livro de fantasia. Um ritual iniciático, uma viagem de ácido, um sigilo arcano, um reencontro com velhos amigos que você nunca conheceu, brindado com coquetéis molotov. A literatura fantástica brasileira acaba de ganhar o seu xamã, e aceitar o desafio requer certa coragem de deixar seus medos para trás. O resultado, além de compensador, é bastante divertido.
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