Toda obra de arte é política, diz a velha máxima. Aquelas comédias ou aventuras sem grandes consequências produzidas há décadas, embora sejam até bobinhas, sempre apresentam um certo tipo de família ou de ordem social como padrão, sem grandes questionamentos. É a construção do normal, e quem difere em algo do que é estabelecido, por consequência, é o anormal. E o papel “normal” da mulher sempre foi o de coadjuvante – a mocinha em perigo, a esposa recatada, a secretária submissa. Contudo, desde que o feminismo ganhou força nos anos 60, esse papel foi questionado e aos poucos foram vindo as mudanças, até chegar ao momento atual, quando as personagens femininas ganharam força como nunca, e com isso incomodando certa parcela do público, que vou chamar de “conservador” para fins de ser educado.
O caso mais emblemático é o das novas Caça-Fantasmas. O filme já foi odiado pelos machistas a partir da escalação do elenco principal só de mulheres, e ganhou tantos haters que virou questão de honra para eles o filme ser um fracasso. A desculpa oficial é a falta de fidelidade com o original, mas isto não se sustenta. Primeiro, porque quem produziu foram as mesmas pessoas que já eram detentores dos direitos autorais da franquia. E segundo, porque os originais não possuíam uma base de fãs tão grande assim. Eles estavam até meio esquecidos do público, embora sejam sim bons filmes (quantos produtos derivados de Caça-Fantasmas vocês viram nos últimos 20 anos?).
O que incomoda, na verdade, é que dos anos 1980 para cá as mulheres cada vez mais brigaram e conseguiram espaço em pé de igualdade com os homens (embora a situação ainda esteja longe de ser equilibrada). E não só as mulheres como os negros e outras minorias, que cada vez mais mostram seu inconformismo quando sofrem preconceito. Isso incomoda o tal do homem branco cis hétero, que aos poucos perde seu lugar de privilégio na sociedade e acha que está sendo perseguido, quando na verdade só está sendo chamado à responsabilidade por perpetuar uma situação de desigualdade apenas pelo comodismo, já que é o maior beneficiado pela manutenção do status quo.
O grande poder da indústria cultural está justamente na capacidade de disseminar ideias em larga escala, e a partir do momento em que ela mesma está engajada em superar o status quo, isso passa a incomodar de forma absurda os tais “conservadores”. E não é só em um ou outro filme que as mulheres estão mandando bem. Nos quadrinhos, a Marvel está vendendo cada vez mais para o público feminino. O grande destaque é a Ms. Marvel, uma adolescente de família muçulmana que vive em Nova Jérsei e ganha superpoderes, tendo que se virar entre a vida no colégio, com a família e amigos e o combate ao crime. Lembra até um certo herói aracnídeo no começo da carreira, mas ao mesmo tempo apresenta questões próprias tanto pelo aspecto de gênero quanto pelo étnico e religioso.
Toda essa diversidade acaba por tornar mais rica a cultura pop como um todo, uma vez que mais histórias diferentes podem ser contadas. A grande vantagem das pessoas que gostam de ler é justamente ter acesso a outras visões de mundo que não sua própria, havendo uma maior facilidade de se colocar no lugar do outro. Só que, por mais que isso seja possível, haverá questões que só podem ser levantadas por quem vive a situação. A própria Ms. Marvel, por exemplo: sua roteirista, G. Willow Wilson, é uma mulher muçulmana que vive nos EUA, e por isso retrata de forma autêntica os dramas vividos pela protagonista, o que um roteirista homem e cristão não conseguiria, por mais que possa em algum ponto se identificar com a personagem.
Todos esses produtos com novos públicos-alvo acabam atraindo uma audiência ávida por se sentir representada. O que é bom para os negócios, já que hoje se vende mais quadrinhos do que 20 anos atrás. Os fãs mais antigos talvez se lembrem de que, no final dos anos 1990, as vendas de HQs de super-heróis estavam tão baixas que havia até quem anunciasse a morte do gênero. Hoje isso mudou, e não só pelo sucesso dos supers no cinema: as novas heroínas femininas vendem bem (como a nova Thor, Spider Gwen e a já citada Ms. Marvel).
Aqui está a chave da questão: essas grandes corporações não pregam a revolução comunista e vão invadir todas as casas, se apropriar dos meios de produção e matar a burguesia. Elas, como todo bom capitalista, estão interessadas no lucro, e a verdade é que há todo um público de minorias que está sendo conquistado justamente porque, pela primeira vez, se sentem representados de verdade. É um público consumidor em ascensão, que começa a ter voz, e se não for bem retratado, vai reclamar sim, pois não é mais aceitável que sejam retratados como cidadãos de segunda categoria.
No final, é um processo que acaba por reforçar o capitalismo, pois se este se mostra inclusivo, maiores são as chances de ser abraçado pelas minorias, que questionarão seu papel dentro dele, mas não defenderão outra forma de sistema político e econômico. E não podemos esquecer que desde 2008 o capitalismo vive uma crise mundial intensa, e precisa se reinventar para sair fortalecido (como vem se reinventando a cada crise desde a Revolução Industrial).
Por isso mesmo que todo esse mimimi antifeminismo na cultura pop, que chega a situações extremas como no caso gamergate, é retrato do mais puro preconceito, fruto da ignorância e da intolerância com quem pensa diferente. É o pessoal que vai ficar para trás na História, como os brancos segurando cartazes a favor da segregação racial nas fotos dos anos 1960. E a cultura pop, como toda arte em geral, sempre marca quando olha para frente, anunciando a mudança dos tempos e sendo ela própria essa mudança.
Todo esse preconceito tem no fundo uma postura anti-intelectual que não tem nada a ver com o que é ser nerd. O nerd sempre foi um cara que gostava, acima de tudo, de buscar o conhecimento por aquilo que gostava, nunca se contentando apenas com a superfície. Mas em algum momento isso começou a mudar, e hoje há um certo tipo de macarthismo, com uma gritaria anticomunismo totalmente descolada da realidade, querendo calar vozes diferentes com os argumentos mais esdrúxulos possíveis.
Eu não posso vir aqui querer dizer como as mulheres, os negros, homossexuais e outras minorias devem reagir e se posicionar, pois não faço parte de nenhuma delas. Mas também não posso ficar calado vendo esse tipo de reação acontecer e fingir que não é comigo. Acho que é sim dever de todos se posicionar e repudiar veementemente qualquer tipo de discurso que favoreça o preconceito e a segregação. E não quero que a minha diversão (filmes, séries, livros e HQs) tenha que ser às custas do sofrimento alheio, ao contrário – quanto mais nos divertimos juntos, mais todos nós seremos felizes.
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