Talco de Vidro (2015), Marcelo Quintanilha.
Rosângela é uma dentista que vive uma confortável vida de classe média alta em Niterói. Contudo, sente-se incomodada pela alegria da prima mais pobre, Daniele, o que a faz se questionar sobre sua própria vida, rumando para um caminho depressivo e autodestrutivo.
Muito já se falou e se discutiu sobre a ascensão da Classe C no Brasil nos últimos anos, geralmente por um viés econômico ou político. É claro que isso acabaria se refletindo na arte, como no filme Que Horas Ela Volta?, da diretora Anna Muylaert. Mas a obra que abordou o fenômeno de forma mais brilhante e sutil foi Talco de Vidro, de Marcelo Quintanilha.
Niteroiense radicado em Barcelona, Quintanilha consegue trazer uma visão que foge do mero bate boca político, fazendo um estudo psicológico de certa parte da classe média alta que mal consegue disfarçar seus preconceitos, onde a posição social é a razão da própria existência, fazendo questão de se sentir e se mostrar superior em relação a quem tem menos bens materiais.
A protagonista da HQ é Rosângela, dentista bem-sucedida que vive a vidinha perfeita de classe média: mora em um duplex em Icaraí (bairro de classe média alta da cidade de Niterói), tem um marido com dinheiro, filhos educados e que tiram boas notas. No entanto, parte da família mora no bairro operário do Barreto, incluindo sua prima Daniele. Esta teve a vida mais sofrida: pai alcoólatra que praticava violência doméstica, casamento desfeito, não conseguiu se formar, precisou arranjar emprego para se sustentar e acabou voltando para a casa dos pais.
Rosângela faz questão de mostrar que sua vida é melhor de forma discreta, sem afrontar, mas sempre marcando posição. No entanto, não consegue parar de se incomodar com o constante sorriso da prima, sempre puro e sincero. O incômodo se transforma em inveja e vira obsessão, a ponto da protagonista inclusive violar a ética médica para tentar tornar o sorriso da outra mais feio.
Enquanto Daniele tenta consertar as coisas e seguir em frente, Rosângela se afunda em depressão. A cada vitória da prima, Rosângela vai se destruindo, como se a vida que construiu não mais servisse, uma vez que sua felicidade não serve mais como contraponto à infelicidade da prima. Ao se desnudar em sua inveja e mesquinharia, a protagonista tenta se reinventar, mas sempre à sombra da outra, o que não pode resultar em bons frutos. É a classe média ressentida, que não pode admitir que os que vem de baixo consigam obter suas vitórias se isso significar uma igualdade de classes.
Quintanilha consegue trabalhar as contradições de sua personagem de maneira muito bem construída. Sua arte é ao mesmo tempo leve e detalhista, casando muito bem com o texto. A narração é em terceira pessoa, lembrando a ideia defendida por José Saramago de que o narrador também é personagem. A linguagem próxima da oralidade e a não-onisciência também lembram o mestre português, mas as semelhanças param por aí, pois os estilos são bem diferentes. Os diálogos são naturalistas, bem parecidos com conversas comuns de pessoas na mesma posição social.
O traço consegue passar as emoções das personagens, principalmente nos olhares. Além disso, o artista consegue retratar com perfeição a cidade de Niterói, com suas belezas e contradições. De certa forma lembra a Nova York filmada por Woody Allen, tornando o cenário sempre marcante. Quem mora ou conhece Niterói identifica fácil os vários locais que aparecem na HQ, como a Pedra de Itapuca, a Praia de Icaraí, o MAC (Museu de Arte Contemporânea, obra de Oscar Niemeyer), a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, entre outros.
Também merece destaque o bom trabalho da Editora Veneta com o material, publicado em capa dura, com papel couché e no formato 17 x 26 cm, o que permite ao leitor poder apreciar a arte, bem como dá espaço para que o texto não fique “apertado” dentro das páginas.
Marcelo Quintanilha sabe discutir problemas sociais fugindo dos clichês, com suas personagens tendo comportamentos verossímeis e condizentes com suas personalidades. Nada é forçado, tudo flui naturalmente. O autor a cada livro vem se superando, jogando para cima a qualidade de sua obra. Tanto a arte quanto o texto, o roteiro e a ambientação fazem ser seguro afirmar que se trata do artista nacional mais completo no campo dos quadrinhos. Em Talco de Vidro, ele mostra que seu equilíbrio como criador se reflete na maturidade de seu trabalho.
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