Já foi dito que todo artista deveria, em algum momento, tentar recontar a história do Jesus. Há inúmeras obras que fazem isso, mas aqui vamos nos ater a dois filmes: A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, e A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese.
No primeiro, temos um enfoque no calvário de Jesus, nos mostrando uma sessão de tortura quase insuportável, enfatizando o sofrimento sobre-humano descrito no Novo Testamento. O filme sofreu fortes acusações de antissemitismo, e trouxe de volta a velha discussão sobre a culpa dos judeus pela morte de Jesus (algo que foi muito bem sacado pelos autores de South Park, que em um de seus episódios mostram Eric Cartman tentando se utilizar do filme para pregar uma espécie de segundo holocausto).
Já no filme de Scorsese, vemos um Cristo que é poupado da morte na cruz, e passa a viver uma vida mundana, ao lado de Maria Madalena, numa visão próxima a que é apresentada nos evangelhos apócrifos. Aqui, Judas é uma figura política, que a todo momento lembra a seu mestre do seu compromisso para com o povo de Deus.
Curioso que esta visão profana do Messias foi considerada herege e sofreu censura em vários países. Resultou até mesmo em uma condenação internacional ao Chile na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violação à liberdade de expressão. E até hoje incomoda uma grande parcela dos cristãos.
Acho que a grande pergunta que devemos fazer é: se Jesus era humano, por que a visão religiosa em geral tenta camuflar isto, insistindo apenas em ressaltar seu aspecto divino? Se era mesmo homem, ele sangrava, suava, chorava, amava, enfim, neste sentido, ele possuía a mesma experiência que todos nós.
Por que afirmar isso é ofensivo, e assistir a duas horas de uma sessão de tortura não é? Ao contrário, é considerado exemplo de obra edificante para a religião? É curioso como esta visão mais tradicional, se é que pode assim ser chamada, muitas vezes acompanha um discurso de ódio que, hoje, é ainda mais potencializado pelo alcance das redes sociais. Não é difícil achar quem se diz temente à Deus e aos ensinamentos de Jesus, mas que defende posições machistas, homofóbicas e que buscam julgar a vida alheia sem antes olhar para o próprio umbigo.
Sinto informar, mas a Bíblia não é um Habeas Corpus preventivo para ser canalha. Ao contrário, Jesus é bem claro em lições como amar ao próximo, dar a outra face e não julgar para não ser julgado. Isso para não lembrar que ele defendia prostitutas, leprosos e quem mais fosse julgado como a “escória” da sociedade da época.
Neste sentido, ser cristão não é estar ao lado dos poderosos ou de quem vocifera ódio para disfarçar as próprias ambições mundanas. O cristão é quem vai estar ao lado das minorias, dos desfavorecidos, dos imigrantes, dos marginalizados, de quem mora na rua, de quem luta para conseguir botar um prato de comida na mesa.
O problema do filme Paixão de Cristo é que ele reforça todos os lugares comuns em relação aos preconceitos decorrentes da religião. Neste sentido, o filme de Scorsese, embora tome liberdades em relação ao Novo Testamento, tenta recuperar o aspecto místico do fenômeno religioso. Se Deus está em todos, está também naquele sobre o qual destilamos nossos medos e nossos ódios. Amar o próximo, nessa perspectiva, é amar a si mesmo. Ao reforçar os desejos humanos de Jesus, Scorsese nos lembra o que temos de divino, reforçando nossas semelhanças e nossa empatia. Já o filme de Gibson lembra, de certa forma, um filme pornográfico, sendo tão explícito graficamente em sua violência que nos impede de nos colocarmos no lugar de quem sofre.
Enquanto estivermos em uma confortável noite de Natal, com ceia farta e nossos familiares à mesa, que tal deixar nossas verdades prontas de lado e refletir sobre a figura de Jesus? Se ele passou por todo aquele sofrimento descrito na Bíblia por nós, será que a maneira de retribuirmos é causando mais sofrimento ao próximo por conta de nossos preconceitos?
Jesus foi humano. Seja humano você também.
Um feliz natal para todos!
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