A terceira margem de Twin Peaks: Magia é linguagem em David Lynch

Twin Peaks

O que é um idoso? É uma criança de idade, segundo Simone de Beauvoir.

A terceira temporada de Twin Peaks apresenta rostos marcados pela idade, pessoas convivendo com doenças, pessoas convivendo com a proximidade da morte e com o desaparecimento de outras pessoas queridas. Nosso herói principal em temporadas passadas, o agente do FBI Dale Cooper, hoje 27 anos mais velho, se desdobra em outros dois personagens: o doppelganger, o Dale Cooper do mal, e o tulpa, Dougie Jones, sendo que esse terceiro personagem apresenta-se com uma série de comportamentos ao redor de vários episódios que são semelhantes ao comportamento de um homem debilitado por uma doença cerebral degenerativa, como o Mal de Alzheimer, por exemplo. Como uma criança de idade, Dougie Jones, que consegue apenas expressar-se repetindo a última palavra de qualquer sentença ouvida, traz os momentos mais ternos e engraçados da série, uma série que oscila entre o humor ingênuo e o mais puro terror.

A obra de David Lynch é realmente complexa e hermética. Mas, ao contrário de boa parte de obras desse tipo, não é exatamente racional. Apela para o afeto, para a emoção, para os sentidos. Daí a importância tão grande que o artista dá a música e ao desenho sonoro de uma obra. Ele mesmo músico, há poucos anos lançando o excelente álbum de música eletrônica Crazy Clown Time1, também é responsável, na terceira temporada de Twin Peaks, pelo Desenho de Som da série. A música tema de Angelo Badalamenti se preservou na abertura, sendo importante para nos transportar para o clima das temporadas anteriores, deste universo multissensorial e desses personagens de múltiplas camadas.

E rever os personagens depois de tantos anos é como rever velhos conhecidos. Alguns diferentes, praticamente irreconhecíveis, outros mais velhos, mais solitários, outros doentes, outros ainda mortos. Lynch apropriou-se do próprio envelhecimento e proximidade da morte de seus atores e transportou para seus personagens. A lista de atores mortos2 pouco antes de Twin Peaks ir ao ar é considerável. Vários deles, idosos, fizeram participações antes de morrer, outros poucos não tiveram tempo, mas, ainda assim, pela narrativa de Lynch, ganharam existência própria e eram personagens fundamentais para essa nova temporada. Dentre esses que morreram antes das gravações, Frank Silva e seu personagem Bob, Don Sinclair Davis e seu Major Briggs, além de David Bowie e seu agente do FBI Phillip Jeffries, são fundamentais para a trama atual.

Alguns dos personagens de Twin Peaks, além do já citado agente Cooper, apresentam-se nessa temporada em doppelgangers ou tulpas. Doppelgangers, originários das lendas alemãs, são seres fantásticos que são uma cópia idêntica de uma pessoa escolhida por um determinado magista. Tulpas, originários das lendas tibetanas, são formas mentais que ganham vida através da meditação e da força de vontade de um mago. São mitologias que se relacionam com o mito judaico do Golem, um ser inanimado geralmente feito de pedra que ganhava vida pela força de vontade de pessoas iluminadas.

O real (ou parte dele) e o simbólico nessa terceira temporada interpelam o expectador a todo o momento a respeito da terceira idade. O próprio personagem de David Lynch na série, o agente Gordon Cole, com seu onipresente aparelho de surdez, é um homem mais velho fascinado por jovens mulheres, em busca de seus velhos amigos que vão desaparecendo aos poucos, que não podem mais ser encontrados ou que não são mais reconhecidos como ele conhecera. Mas, talvez, uma correspondência de Lynch também possa ser vista na pele do personagem de Russ Tamblyn, o Dr. Lawrence Jacoby; de forma irreverente e irônica, o Dr. Jacoby se tornou uma espécie de teórico da conspiração, um velho preocupado com o veneno presente no mundo, nas comidas, com as toxinas ambientais que, cotidianamente, nos causam câncer, embolia pulmonar, verrugas, paradas cardíacas, com a contaminação do ar, do solo e da água. Determinando que vivemos no lamaçal da realidade, ele apresenta à todos, em seu programa de rádio, uma saída. Uma saída em troca de módicos $ 29,99.

Na verdade, como o Dr. Jacoby, Lynch oferece a seu público uma sugestão de uma nova percepção, apresenta parâmetros de uma nova realidade em que a terceira idade se mostra plena em sua fragilidade, repleta de rugas, desmemoriada e à beira da morte. Numa sociedade em que a juventude, o condicionamento físico e a imagem são valores exigidos, Twin Peaks é uma série corajosa em ter em seu elenco e em seu corpo de trabalhadores um universo tão amplo e rico de atores e personagens em terceira idade. Nesse sentido, é extremamente contestadora, pois um dos dilemas da sociedade contemporânea reside justamente na saída de um sem número de pessoas do mercado de trabalho e a entrada na terceira idade.

A obra lynchiana lembra muito o insólito presente na obra rosiana. O escritor Guimarães Rosa, em seu conto A Terceira Margem do Rio, apresenta essa expressão no título que remete a algo abstrato, inconsciente, pois a terceira margem é o não presente, o não visto, o que não pode ser percebido pelos sentidos humanos. Em seu conto, Rosa apresenta a história de um homem que abandona a sua família para ir viver em uma canoa e nunca mais sair dela.3 A terceira margem em Rosa, assim como a terceira temporada em Twin Peaks, é o medo do desconhecido, o medo da morte, que vem com a proximidade da terceira idade.

Lynch, como Rosa, busca abrir novas portas de percepção, daí também a presença nessa terceira temporada de conceitos como multiversos, portas dimensionais e UFOs. Tudo conduzindo para uma nova percepção do tempo e do espaço por parte do espectador que, ao ser reapresentado àquele universo 27 anos depois, têm que buscar em si uma nova forma de ver a série. O espectador tem que usar sua própria consciência para discernir o que é real e o que é ilusão, ou dentro do contexto da série, de que portais ou dimensões saíram determinados personagens; o conteúdo de Twin Peaks não é um conhecimento que tem que ser apreendido, mas sim um conhecimento que devemos deixar se manifestar. Para o escritor Guimarães Rosa, o escritor deve trabalhar como um mago. E magia, segundo outro escritor, Alan Moore, é linguagem. É através da renovação da língua que se pode reinventar o mundo, segundo Rosa.

De forma alguma a série como um todo, e mesmo a sua terceira temporada, se resume à questão do envelhecimento. A série é rica em significados e um dos seus objetivos centrais é quebrar os laços que transformam a realidade em que vivemos em uma crença dominante. Lynch, como um bom mago, acredita que uma gnose poderosa pode quebrar os laços da crença dominante e embutir uma nova crença por debaixo de uma realidade consensual. Uma gnose, um conhecimento, manifestado através de sua linguagem.

A série terminou a pouco mais de um mês, tornando-se já um clássico contemporâneo entre as séries e, mesmo que não ganhe muitos prêmios futuramente no Emmy Awards, certamente deixa um legado que vai influenciar diretamente diversos realizadores do cinema e da TV. Foram ao todo 18 episódios, com cerca de uma hora de duração cada. Todos dirigidos por David Lynch, que ainda dividiu o roteiro com seu fiel escudeiro Mark Frost. Muitos temas, muitos caminhos, a navegação pela série, tudo isso é particular, cada um atribui-lhe o senso que quiser. Como o próprio Lynch disse recentemente, você pode ter contato com determinadas obras de arte e não ter condição de perguntar ao autor em questão o que ele quis dizer. Seja pela impossibilidade da distância ou simplesmente pelo autor já estar morto. Ou seja, Lynch conclama para que cada um organize suas próprias ideias em torno de uma obra. É um mergulho em águas profundas.

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1 A faixa de trabalho do álbum, Good Day Tooday: https://youtu.be/IugOfDBWcGc

2 Lista de atores mortos: David Bowie (1947-2016); Jack Nance (1946-1996); Catherine E. Coulson (1943-2015); Warren Frost (1925-2017); Frank Silva (1949-1995); Harry Dean Stanton (1926-2017); Miguel Ferrer (1955-2017); Michael Parks (1940-2017); Don S. Davis (1942-2008).

3 “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho” – trecho de A Terceira Margem do Rio.