Somos todos replicantes

Replicantes

Se o que define a humanidade é a capacidade de enxergar no outro um igual, estamos falhando miseravelmente. Em Blade Runner 2049, continuação do clássico da ficção científica de 1982, Ryan Gosling interpreta o personagem K., um replicante que caça outros replicantes. Mesmo dotado de sentimentos, os replicantes não são considerados seres humanos por terem sido concebidos artificialmente, embora feitos de carne e osso, por meio da bioengenharia (e não androides como o título em português do filme original indicava). Ainda assim, é através deles que o filme nos faz questionar o que é a essência do que chamamos de raça humana.

Gerou certa controvérsia no filme a personagem Joi, vivida pela atriz Ana de Armas. Trata-se de uma inteligência artificial que toma a forma de uma mulher em formato de holograma. Vendida em escala industrial, ela é programada para amar incondicionalmente seu proprietário, atendendo seus desejos e sempre querendo agradar de forma submissa. A polêmica se deu pela forma como ela supostamente retrataria a mulher como mero objeto, mas a questão é justamente a de que ela é uma projeção de um certo ideário feminino gerado pela sociedade patriarcal, onde a mulher deve sempre servir ao homem, sendo a função dela apenas cumprir o papel por ele designado.

O que o filme traz, na verdade, é uma visão crítica dos relacionamentos humanos tal como hoje se constroem. O personagem de K. não tem vida social que não seja o trabalho. Sua única relação além disso é com um software que atende seus anseios narcisistas e sempre o está adulando para garantir que tudo esteja bem. Com isso, não importa que o mundo a sua volta esteja desabando, cercado de miséria e desolação.

Seguindo a ambientação do Blade Runner original, o filme retrata o pesadelo urbano em que vivemos, projetando em um futuro próximo ao caos ambiental, a poluição sonora e visual, com propaganda se utilizando de apelos sexuais primitivos com o único objetivo de produzir lucro. A cidade no filme é barulhenta, suja, violenta e superpovoada, e o único momento de alívio é quando se tranca a porta de casa e se pode afundar numa realidade virtual onde tudo pode ser esquecido.

É aqui que o filme se conecta com a nossa realidade. Fala de nossa constante conexão com as redes sociais, cujos algoritmos são projetados para nos adular e nos fazer querer sentir protegidos dentro de bolhas onde todos concordam com nossas visões de mundo. Enquanto isso, o planeta caminha para o apocalipse ecológico, as riquezas estão cada vez mais concentradas nas mãos de poucos, e nossos humores são manipulados para um constante conflito onde somos o bem e o adversário é o mal.

Desta forma, conseguimos nos conectar mais com a interface de softwares do que com pessoas com quem somos obrigados a conviver. Perdeu-se todo o constrangimento em se defender posições preconceituosas, como extermínio de homossexuais, moradores de rua, criminosos e menores infratores, ou qualquer outro grupo escolhido como vilão. Mais do que isso, alguns movimentos organizados chegam mesmo a exigir que escolas e museus sejam proibidos de tocar em qualquer tema que trate da diversidade como algo positivo. Querem anular o debate simplesmente forçando a sociedade a fingir que não existe o que é diferente.

O filme aponta para uma solução, que não vai ser contada aqui qual é. A grande reflexão que fica, contudo, é que cabe aos próprios replicantes se organizarem para mudar as estruturas sociais. Mais do que a origem, o que importa é o sentimento, e é isto o que nos faz humanos. A nulificação do diferente visa a manutenção dos próprios privilégios, e não vai simplesmente tentando se adequar ao sistema que o reconhecimento virá. Pois não importa o quanto você seja bom ou tenha servido bem ao Poder, no final você sempre será lembrado de que é um replicante, e não um humano. Se no Blade Runner original a revolta se dava contra o próprio criador, em Blade Runner 2049 nos é apontado que só atuando coletivamente, abandonando o individualismo e o egoísmo, é que poderemos obter a verdadeira libertação. Sozinhos, somos como lágrimas na chuva. Unidos, somos a própria tempestade que leva o temor às estruturas.