A subversão de Corra!

Corra

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“É mais fácil para um afro-americano ser presidente dos EUA do que presidente de um estúdio de Hollywood”. Com essa fala, o diretor Spike Lee (Malcolm X, Faça a Coisa Certa, A Última Noite), em 2016, iniciou o seu boicote à festa do Oscar ao observar que, pelo segundo ano consecutivo, todos os vinte candidatos aos Oscar nas categorias Melhor Ator/Atriz/Ator Coadjuvante/Atriz Coadjuvante eram brancos. Quase dois anos depois, o filme Corra! (Get Out), de Jordan Peele, encontra-se pré-inscrito no Globo de Ouro para concorrer na categoria Melhor Comédia. Para quem viu o filme, essa pré-inscrição soa absurda, mas ela acaba sendo um demonstrativo de como a afirmação de Spike Lee é pertinente.

A cerimônia de premiação do Globo de Ouro será realizada no dia 07 de Janeiro em Los Angeles. O que foi vazado para a imprensa foi a categoria em que o filme foi pré-inscrito. Será efetivamente confirmada a inscrição nessa categoria (ou um possível reposicionamento em outra categoria) no próximo dia 11 de Dezembro. Só aí saberemos se, de fato, Corra! irá concorrer como Melhor Comédia. Porém, ainda que a mudança seja feita, é interessante observar que essa pré-inscrição levanta algumas discussões a respeito de definição e subversão de gêneros cinematográficos.

O Globo de Ouro é uma premiação anual que se apresenta como um grande jantar para indicados e outros convidados, em que um grupo de correspondentes estrangeiros inseridos na indústria norte-americana vota e define os melhores filmes. Esse é o grande diferencial em comparação com o Oscar. Enquanto a votação e definição dos premiados com o Oscar são feitas pelos próprios profissionais da indústria (atores, diretores, roteiristas técnicos etc.), a votação e a definição dos ganhadores do Globo de Ouro são feitas pela Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood. O Globo de Ouro é a premiação realizada pela crítica internacional especializada e o Oscar é a premiação realizada pelos pares, pelos profissionais de Hollywood.

A inscrição no Globo de Ouro, no entanto, é realizada pela própria produtora dos filmes, como ocorreu com Corra!. Através do twitter, a jornalista brasileira Ana Maria Bahiana, integrante da Associação de Correspondentes Estrangeiros em Hollywood, observou que reuniões estão sendo feitas para saber se o estúdio Blumhouse Productions poderia inscrever o filme de Jordan Peele como comédia. A lógica do estúdio é que o filme teria mais condições de ser premiado na Categoria Comédia do que na disputada Categoria Drama. Não é a primeira vez que isso acontece, tendo a produtora da ficção científica Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott, se apoiado no fato de que seu filme seria um amálgama de gêneros, incluindo aí a comédia. Mesmo que seja em poucas linhas no roteiro, a comédia faria parte da obra.

A Blumhouse Productions é uma produtora que tem se destacado nos últimos anos por sua estratégia ousada e vencedora no mercado cinematográfico de Hollywood especialmente em termos de bilheteria. Tendo à frente o produtor Jason Blum (um produtor branco), a empresa possui feitos consideráveis que não seria exagero compará-los com os antigos feitos da extinta Miramax, dos irmãos Weinstein. Atuando desde 2006 com produções de baixíssimo orçamento, com um enfoque maior em filmes de terror, a Blumhouse já tem em seu currículo cerca de 200 filmes, incluindo sucessos como Fragmentado (2016), Corra! (2017), a franquia Atividade Paranormal e o drama musical Whiplash (2014). O que chama a atenção é que são filmes feitos com pouco dinheiro e que rendem uma bilheteria enorme. Fragmentado custou U$ 9 milhões e rendeu U$ 278 milhões; Corra! custou U$ 4,5 milhões e rendeu U$ 254 milhões e os cinco primeiros filmes da franquia Atividade Paranormal custaram juntos U$ 18 milhões e renderam juntos U$ 811 milhões. Todos são exemplos de sucesso de bilheteria a baixo custo, mas, ainda assim, com pouco reconhecimento de crítica para o estúdio. O que não foi o caso de Whiplash (2014), tendo custado U$ 3,3 milhões, rendeu “discretos“ U$ 48 milhões, abocanhando os prêmios de Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Montagem, Melhor Mixagem de Som no Oscar, além da indicação em diversas outras categorias.

Um dos próximos grandes projetos da Blumhouse Productions é Spawn (2019), um filme que mistura os gêneros super-herói e terror e que conta a história do agente da CIA Al Simmons, um homem negro, que após ser assassinado num golpe articulado por um de seus superiores, vai para o Inferno e adquire poderes sobrenaturais. Estima-se que seu custo seja de U$ 10 milhões de dólares; o objetivo é ser também um tremendo sucesso de bilheteria.

A estratégia de Jason Blum para se destacar no campo cinematográfico é realizar filmes de baixo orçamento e que sejam sucessos de bilheteria. Nesse processo, é necessário que alguns filmes também sejam sucesso de crítica e as premiações exercem fundamental papel no crescimento de sua empresa. Nesse sentido, Corra!, a produção mais lucrativa de 2017 (e não apenas de seu estúdio) é o seu produto mais importante e vale-tudo para conseguir uma premiação importante como o Globo de Ouro, que abre as portas para o Oscar. É um gesto estratégico e mercadológico, mas é também um gesto de total desconsideração com o trabalho autoral de Jordan Peele, com as questões raciais embutidas em sua obra. Peele costuma dar declarações relativizando a decisão da produtora, mas é fato que numa possível disputa com a produtora, sua voz não seria aquela que teria a decisão final.

Já é problemático se fazer tal estratégia duvidosa, porém, isso se torna um problema maior quando estamos falando de Corra!, um filme em que Peele cria um reflexo do nosso mundo, demonstrando a hipocrisia de uma comunidade norte-americana que aparenta viver em uma cordialidade racial. O personagem interpretado por Daniel Kaluuya é um jovem negro convidado para passar um fim de semana na casa dos pais de sua namorada, uma mulher branca. A partir daí, Peele se apropria de elementos de filmes anteriores para trabalhar a espinha dorsal de sua obra, especialmente bebendo em dois filmes dirigido por diretores brancos, Mulheres Perfeitas (1974 — direção de Bryan Forbes) e Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967 – direção de Stanley Kramer). Ainda que flerte com outros filmes de gêneros diversos, em uma estratégia que o próprio diretor chama de subversiva, Corra! trabalha a questão do racismo sob a ótica do terror. A premissa do filme se aproxima muito da premissa do filme de Kramer protagonizado por Sidney Poitier, o convite para um fim de semana e a apresentação de um jovem negro em um jantar com a família da sua namorada branca; porém, as semelhanças param por aí. A mesma história, agora contada sob a direção de um negro, apresenta-se como um pastiche de Adivinhe Quem Vem Para Jantar e não uma paródia. Apresenta-se como uma história de terror. Daí a importância da discussão dos gêneros e suas subversões.

A paródia é uma ferramenta basicamente humorística, ou seja, tem a finalidade de fazer rir a partir da desconstrução de um texto original. O pastiche não apresenta esse teor humorístico e não se baseia em apenas um, mas em vários textos originais, tornando-se uma massa composta de vários elementos distintos. Um exemplo de paródia cinematográfica seria a série de filmes Todo Mundo em Pânico (2000), paródia da série de filmes Pânico (1996). Um exemplo de pastiche seriam os filmes de Quentin Tarantino, onde não está presente o teor satírico para com as obras que serviram de referência e onde se busca criar um trabalho próprio e original a partir de um recorte e cola de segmentos de textos/obras anteriores.

É uma estratégia que pode ser subversiva quando acompanhada de uma reflexão em torno de minorias, como as minorias raciais ou as minorias de gênero feminino ou do gênero LGBT+. E aí retornamos à frase inicial de Spike Lee. Há uma necessidade urgente de que, tanto profissionalmente quanto tematicamente, esses segmentos sejam ouvidos e empoderados em Hollywood. Cargos de poder de decisão para mulheres, negros e LGBT+. É o que evitará que ocorram tanto os abusos de gênero, que vieram à público recentemente, quanto a absoluta e total falta de empatia e de sensibilidade diante de questões raciais. Porque essa falta é o que representa o gesto de uma produtora que insere Corra! para concorrer na categoria Melhor Comédia no Globo de Ouro.