O esoterismo contemporâneo não seria o mesmo sem a influência de um semi-obscuro artista britânico chamado Austin Osman Spare, que é considerado o principal precursor da Magia do Caos. Se você leu Promethea, de Alan Moore, vai lembrar que Spare aparece como um convidado de honra no nº 15 (volume 3), jogando xadrez e trocando farpas com Aleister Crowley.
Nascido em 30 de dezembro de 1886 e influenciado pelo movimento simbolista, Spare chegou a ser saudado como o novo Beardsley, em referência a Aubrey Beardsley, o nome mais conhecido do art noveau, estilo ao qual seu trabalho é mais frequentemente associado. Mas suas ideias excêntricas, bem como a estreita relação entre suas obras e a prática da magia, fizeram com que Spare nunca recebesse a atenção e o sucesso artísticos que seu talento merecia.
Foi só com o advento do surrealismo que a arte de Spare passou a ser revalorizada, mesmo assim, sem jamais ter chegado perto da repercussão de um Dalí ou um Magritte. Apesar de não levar os surrealistas em grande conta, Spare tinha, de fato, muitos pontos em comum com eles, principalmente a prática do desenho automático e o uso da arte como ferramenta para explorar as profundezas do inconsciente.
E, claro, o interesse pelo ocultismo.
Mas a atração dos surrealistas pelo oculto era relativamente superficial e, na maioria dos casos, limitava-se à leitura de um punhado de livros sobre o tema. O próprio André Breton, o pai fundador do surrealismo, a despeito de seu interesse pela alquimia, era racionalista demais para abraçar de verdade o esoterismo, que via apenas como um instrumento para chocar a sensibilidade cristã da burguesia.
Já Austin Osman Spare era the real deal, um mago de corpo e alma, que encarava a arte como um veículo para canalizar forças ocultas e modificar a natureza da realidade.
Na verdade, a magia entrou na vida de Spare antes mesmo da arte. Pelo menos, se dermos crédito à história que ele costumava contar, sobre como, entre os sete e os dez anos, o pequeno Spare foi seduzido e iniciado por uma legítima bruxa britânica, à qual ele se referia apenas como Mrs. Patterson e que alegava descender das Bruxas de Salém, as mulheres condenadas como feiticeiras nos Estados Unidos do séc. XVIII, que inspiraram a peça homônima de Arthur Miller e deram origem à expressão caça às bruxas.
Combinando os ensinamentos recebidos de Mrs. Patterson com suas leituras teosóficas (especialmente Mme. Blavatsky) e ocultistas (sobretudo Eliphas Lévi), Spare desenvolveu seu próprio sistema mágico-filosófico, que continuou aperfeiçoando até o final da vida, e que ficou conhecido como o Culto de Zos Kia.
Na terminologia criada por Spare, Kia é a Mente Universal, que corresponde aproximadamente, de um lado, ao Brahma hindu, à Deusa (Mahashakti) do Tantra indiano e ao Deus impessoal descrito por alguns místicos ocicdentais, como Mestre Eckhart ou Jakob Boheme; e do outro, a conceitos mais abstratos, como o Tao chinês ou o Shunyata budista. É análogo também ao que Crowley chamava de Thelema, a Verdadeira Vontade, e, de certa forma, ao Self (Selbst) junguiano. Não se sabe de onde veio o nome Kia, mas especula-se que pode ter se originado do Chi (Ki) oriental ou, mais perto de casa, do Kia-yu, o poder supremo que Madame Blavatsky menciona na Doutrina Secreta.
No extremo oposto a Kia, temos Zos, que é como Spare denominava a consciência individualizada e encarnada num corpo físico, e que também era o nome mágico do próprio Spare. A palavra provavelmente vem do grego Zoé, que designava justamente a vida individualizada, sob a forma de uma multiplicidade de organismos, por oposição a Bíos, que é como os gregos chamavam a Vida Universal, a vida como conceito abstrato, e que, em certos aspectos, se aproxima da descrição de Kia no sistema de Spare.
É através do inconsciente que Zos e Kia se comunicam, e a comunicação funciona nos dois sentidos: de Kia, Zos recebe insights, conhecimento e inspiração, tanto artística quanto espiritual. Por sua vez, Zos comunica a Kia seus desejos e necessidades. A comunicação ocorre por meio de símbolos e, nisso, Spare concorda com Freud e Jung. Mas, de um modo geral, Spare desprezava o movimento psicanalítico, referindo-se a Freud e Jung respectivamente como Fraud e Junk.
Spare se distanciava igualmente da magia cerimonial, tal como tinha sido codificada pela Golden Dawn no fim do século XIX e depois reformada por Crowley. A Golden Dawn também estava convencida de que o caminho para a evolução espiritual passava por um mergulho no inconsciente e que a linguagem do inconsciente era uma linguagem simbólica. Mas sua visão estava mais próxima da Doutrina das Correspondências neoplatônica, que ainda é um dos alicerces do esoterismo ocidental. De acordo com essa premissa, existe um conjunto limitado de arquétipos espirituais, cujas energias combinadas dão origem a todas as realidades. Esses arquétipos são personificados pelos deuses nos panteões politeístas e por anjos nas religiões monoteístas. Cores, formas, perfumes, letras etc., formam um complexo sistema de símbolos, que podem ser usados para invocar e canalizar essas energias. Como elas são de natureza arquetípica, seus símbolos são universais, e o mesmo se aplica aos rituais criados a partir desse simbolismo, e que geralmente envolvem complicadas sequências de recitações e gestos simbólicos, que o adepto não tem outra alternativa senão decorar.
Spare tinha pouca paciência para o que considerava as firulas desnecessárias da magia cerimonial e, como alternativa, desenvolveu sua própria técnica, que chamou de sigilização. Em vez de páginas e páginas de correspondências simbólicas universais que o mago precisa aprender a combinar, a sigilização adota uma abordagem muito mais intuitiva, baseada em símbolos simples, de natureza individual, empregados num diálogo estritamente pessoal entre o adepto e seu próprio inconsciente.
As técnicas de sigilização de Spare são de uma simplicidade franciscana, ainda mais quando comparadas com as práticas habituais da magia cerimonial. O procedimento mais conhecido envolve formular o intento, o objetivo que se quer alcançar com o ato de magia, sob a forma de uma frase concisa, eliminar as letras repetidas e usar as restantes ou para criar um sigilo mântrico (que, como o nome indica, é um conjunto de letras que se pode repetir como um mantra) ou um sigilo gráfico (um desenho construído a partir da forma geral das letras).
Mas o método preferido pelo próprio Spare, sendo ele um artista, era a prática do desenho automático. Era, também, a técnica que ele empregava para criar a maior parte de suas obras artísticas. Consiste em concentrar a atenção no intento enquanto se deixa o lápis correr livremente pela folha, desenhando sem planejar. Num certo sentido, o desenho como um todo se torna o sigilo. Mas, ao mesmo tempo, Spare argumentava que, contemplando a imagem com atenção, nossos olhos conseguiriam identificar algum elemento ou traço, perdido entre os detalhes do desenho, que poderia ser usado como um glifo do intento ou, para empregar a linguagem do próprio Spare, um glifo do desejo encarnado no sigilo.
Desejo é um termo-chave no Culto de Zos Kia. Como na filosofia que Deleuze e Guattari formulariam décadas mais tarde com O Anti-Édipo, o desejo em Spare não está relacionado a uma falta freudiana que seria preciso preencher. Pelo contrário, ele é uma força ativa, produtiva, de fato a força produtiva por excelência. A prática do sigilo é menos uma petição para que alguma força cósmica nos dê o que queremos, e mais uma operação ontológica, por meio da qual o desejo cria a realidade correspondente ao intento.
Eventualmente, diz Spare, o mago que pratica a sigilização com frequência vai notar que certos glifos do desejo se repetem, sempre com significados parecidos. Esses glifos são a representação, em forma de sigilo, dos mesmos princípios cósmicos universais, das mesmas forças arquetípicas que a magia cerimonial tenta codificar com suas correspondências enciclopédicas. A diferença é que eles têm um valor subjetivo, já que não foram aprendidos, mas descobertos organicamente por meio da própria atividade mágica do sujeito. E por terem uma relevância pessoal para o adepto, são muito mais poderosos do que as formas culturais desgastadas usadas pela magia cerimonial. Reunidos, formam o que Spare chamou de Alfabeto do Desejo.
Spare e Crowley chegaram a ser amigos próximos durante um certo período, depois que Crowley descobriu e ficou fascinado pelo trabalho do artista. A convite de Crowley, Spare ingressou na A. A. (Argentium Astrum), a sociedade secreta que Crowley criou depois de praticamente destruir a Golden Dawn original (longa história, e assunto para outra coluna). Mas a ênfase de Spare na experimentação e na liberdade individual bateram de frente com a estrutura hierárquica e o apego que Crowley ainda tinha à magia cerimonial. Além disso, as más línguas dizem que Crowley teria assediado Spare sexualmente. Cada um saiu batendo porta para um canto, Crowley dizendo que Spare era um mago talentoso, mas indisciplinado, e com uma atração pouco saudável pela magia negra (!), e Spare resmungando que os adeptos da magia cerimonial não passavam dos “dândis desempregados dos bordéis”.
Depois que a art noveau saiu de moda, a carreira artística de Spare, que nunca foi estrondosa, mergulhou de vez na obscuridade. Ele deu aulas de desenho, tentou lançar duas revistas e fez várias exposições, mas sem grande repercussão. Em 1949, conheceu o casal Steffi e Kenneth Grant, que se tornaram amigos do artista em seus últimos dias, publicando um livro de entrevistas com ele, Zos Speaks: Encounters with Austin Osman Spare. Spare morreu em 1956, aos 69 anos. Na década de 1970, seu trabalho foi redescoberto por dois ocultistas britânicos, Peter J. Carroll e Ray Sherwin. Fascinados pela técnica de sigilização, incorporaram-na em suas próprias práticas.
E inventaram a Magia do Caos.
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