Até que ergamos Jerusalém

Alan Moore

Antes de qualquer coisa, é preciso confessar que comecei esse texto algumas vezes. Escrever sobre alguém que você admira pode se mostrar uma tarefa bem complicada. Ainda mais quando tem mais ou menos uma década que toda vez em que o nome dessa pessoa aparece em alguma notícia ele é logo atacado como um velho ranzinza que adora destilar veneno e secretamente recebe dinheiro pelos trabalhos que ele tanto menospreza. E quem reproduz esse discurso sobre Alan Moore, francamente, tá falando merda.

Vamos fazer um pequeno apelo à lógica nesses tempos onde a insensatez parece imperar. Pra começo de conversa, Alan não escreveu só Watchmen e V de Vingança num arroubo de criatividade que não encontrou mais par em sua carreira de mais de quarenta anos como criador de quadrinhos. Moore costuma ser apresentado como uma figura messiânica, mas não é só porque ele se parece com uma. A forma como assinava suas colunas e fazia alusões a si mesmo (e ao amigo Steve Moore) já nas primeiras histórias para a revista Sounds, ainda na década de 1970, somado ao fato de que produzia em velocidade e qualidade muito acima da média, certamente colaborou para que, durante a chamada “Invasão Britânica” ocorrida nos anos 1980, Alan tivesse gozasse de grande destaque midiático.

E todas as vezes em que vejo alguém perder alguns segundos e caracteres do Twitter para dizer como o Alan se parece com um mendigo, eu só consigo pensar que essa pessoa não manja nada da trabalheira que é cultivar uma juba. Primeiro porque dá uma amolação da porra ter que ficar desembaraçando barba e cabelos compridos, porque eu não sei quando foi a última vez que vocês checaram o mito de Sansão, mas cabelo é um negócio que só para de crescer quando você fica careca ou depois de uns dias de enterrado. Eu não sei quem é o barbeiro do Alan, mas tenho certeza de que alguém o ajuda com as madeixas. Com os anos, ele, que sempre gostou de uma câmera, foi ficando mais vaidoso.

É verdade que Alan já usava roupas extravagantes em eventos de quadrinhos no auge da sua carreira, mas boa parte das suas fotos na década de 1990 revelam um homem que se misturaria tranquilamente à multidão durante um show de Heavy Metal. Logo, não acredito que tenha sido a magia a responsável por Alan querer comprar sapatos novos e ternos coloridos. Tá mais pra ter sido o casamento, que aconteceu justamente depois que o barbudo se encheu do clima de amor e ódio com a indústria dos quadrinhos e deu um basta na sua relação com a DC Comics. Ah, um espertinho ali atrás levantou a mão, com a velha ladainha de que o barbudo reclama de barriga cheia e que se não gostasse mesmo, devia devolver os cheques. Mas aí é que tá, jovem mancebo, Alan não tá reclamando da mixaria que ele recebe de royalties. Ele recebe porque é direito dele, oras. Com exceção de Do Inferno e A Liga Extraordinária, que foram negociados direto com os autores, todas as outras adaptações da obra de Moore foram feitas sem as suas bençãos e, em alguns casos, gerando tanto mal-estar, que o cidadão mais famoso de Northampton passou a sua parte dos lucros para os desenhistas de tais obras e se afastou de qualquer manchete que tenha a ver com isso.

E, a despeito de todo chorume que ainda brota ao redor do seu nome, com grandes editoras canibalizando sua obra pregressa e fanboys fascistoides tentando desqualificar sua moral, é inegável que Alan segue um criador de qualidade ímpar e que não cansa de desafiar sua audiência. Enquanto estudava os crimes de Jack, o Estripador, tentando relacionar historicamente a onda de assassinatos que abalou Londres no final do séc. XIX, Moore foi apresentado à obra psicogeográfica de Iain Sinclair por Neil Gaiman.

É provável que o criador de Sandman estivesse colaborando para a viagem mística na qual Alan mergulharia de vez, com a ajuda de Steve Moore. Moore relata que observou a sério o mergulho que o amigo de adolescência estava fazendo, manifestando a deusa lunar Selena em sua casa vazia, antes de decidir fazer ele mesmo suas primeiras incursões ao mundo da magia.

Como ambos rejeitavam o dogmatismo e sistematização de diversas ordens místicas, estudaram a fundo o que lhes convinha e aperfeiçoaram métodos que os servisse.

A relação com a magia e o descobrimento da psicogeografia ressignificada por Iain Sinclair influenciaram a obra de Alan sobremaneira. Embora discreto em seus trabalhos mainstream, as cidades e os lugares onde as histórias ocorriam tinham lá sua personalidade (uma Nova York futurista em Promethea, espíritos psicogeográficos vagando pelas ruas de Londres em A Liga Extraordinária, uma cidade cujas sombras abrigam monstros capazes de devorar a realidade em Providence), mas é principalmente fora dos quadrinhos onde essas duas artes se combinam e resultam em peças que podem figurar como os maiores trabalhos de Moore.

“As pessoas são conscientes de que alguns bairros são tristes e outros agradáveis. Mas geralmente assume simplesmente que as ruas elegantes causam um sentimento de satisfação e as ruas pobres são deprimentes, e não vão mais além. De fato, a variedade de possíveis combinações de ambientes, análoga à dissolução dos corpos químicos puros num infinito de mesclas, gera sentimentos tão diferenciados e tão complexos como os que pode suscitar qualquer outra forma de espetáculo. E a menor investigação revela que as diferentes influências, qualitativas ou quantitativas, dos diversos cenários de uma cidade não se pode determinar somente a partir de um estilo de arquitetura, e ainda menos a partir das condições de vida.” (Introdução a uma crítica da Psicogeografia Urbana, Guy Debord).

Se esta é a orientação dos Situacionistas, buscando estabelecer um elo entre o lugar e a sua própria História, com base nos ecos metempsicóticos da Natureza, Iain Sinclair galga um degrau, propondo que essa investigação seja feita também com uma base mística que Alan usou como lente em alguns dos seus trabalhos, como Do Inferno, Snake and Ladders e, de forma ainda mais enfática nos seus dois romances, A Voz do Fogo e Jerusalem, e na prosa curta Unearthing, misto de psicogeografia do bairro londrino de Shooter’s Hill, e de biografia do seu velho amigo, Steve Moore.

Dos três últimos trabalhos mencionados, apenas o primeiro deles, A Voz do Fogo, teve seu texto vertido para o português até agora. O autor deste artigo, de forma canhestra, ensaia uma tradução pirata de Unearthing há já alguns anos, enquanto amigos e magos fazem lobby para que Ludimila Hashimoto repita o feito obtido com o primeiro romance de Moore, traduzindo também Jerusalem.

“Comovo-me quando os raios do sol ao entardecer

Alumiam as velhas casas da quinta frente ao monte

Colorindo de vida as formas que perduram

De séculos mais reais que este que conhecemos.

E nessa estranha luz sinto que não estou longe

Dessa massa imutável em que as faces são as épocas.”

Continuidade, de Os Fungos de Yuggoth, H.P. Lovecraft, da tradução de Nicolau Saião.

Com esta epígrafe, tomamos nosso primeiro contato com o segundo livro de Jerusalem, Mansoul. Embora seja encarado como um grande romance tijolesco, o romance de 1200 páginas de Moore é, na verdade, dividido em três livros que funcionam com certa independência um do outro. Quero falar um pouco de Mansoul antes de encerrar essa coluna que, como de costume, não tenho muita certeza pra onde vai.

Depois de gastar 350 páginas apresentando diferentes galhos da árvore genealógica das dezenas de personagens e ruas do bairro do Boroughs, Alan agora passará quatrocentas páginas num ritmo vertiginoso, onde tomaremos contato com a Dead Dead Gang, A Gangue Bem Bem Morta, que é formada por Phyllis Painter, seu irmão Bill, o ruivinho, John Bonitão, Reggie Bowler e Marjorie Afogada, um clube secreto de crianças fantasmas, cujas vidas foram perdidas de forma trágica pelas ruas da cidade. O nome do grupo é tirado de um livro que uma das crianças sonha ter escrito e que eventualmente escreverá, mesmo já morto. “Tem gente que tem sorte de morrer, outros são espertos de morrer, mas não a gente. Nós morremos pra valer.”

A declaração parece mostrar uma certa amargura de um autor que, ao cabo e ao largo de todas as páginas do livro, se mostra consciente de que, embora a arte e o dinheiro possam ser capazes de salvar e dar uma vida de certas regalias a alguns indivíduos (ele, incluído), não passam de ferramentas pouco uteis para quem busca a garantia de uma vida plena e igualitária. Alan nos alerta de que, por mais que nos aproximemos de construir certas mitografias, alimentando egos e diferenças, também nos afastamos da possibilidade de identificarmos, no murmúrio da fornalha, o ritmo distinto dos tempos que amamos e desejamos.

Jerusalem é isto também, não apenas um líbelo mágico sobre o bairro onde cresceu, mas o reconhecimento de que as pessoas são mágicas por si só, sem precisarem necessariamente conhecer o complexo abc cabalístico que perpassa boa parte da obra de Alan. E assim, mágicas em sua complexidade terrena, demasiadamente humanas, mesmo quando não precisam mais ser.

Não à toa, Unearthing é encerrado com seu amigo Steve Moore se dissolvendo sob as águas da chuva, tornando-se parte do bairro onde vive, desaparecendo enquanto se torna imortal. Um método que Moore nos confirma, através de A Voz do Fogo e Jerusalem, é a única escapatória para permanecermos, de alguma forma, como parte da geografia que nos serve de cenário durante a vida. Embora possa ser acusado de ter se tornado um artista metódico e de difícil acesso com suas últimas obras, Moore não perdeu a sua voz.

Aliás, para um homem de voz rouca e enfumaçada, é possível dizer que Alan está cada vez mais afinado. E com fôlego.