O jornal sensacionalista Sunday Express descreveu o mago Aleister Crowley como “o homem mais maligno do mundo” e como “um homem que gostaríamos de esganar”. W. Somerset Maugham escreveu um livro não muito elogioso, conhecido como O Mágico (1908), baseado em sua personalidade, logo após ser apresentado a ele por um amigo em comum. Além disso, o governo italiano de Benito Mussolini expulsou Crowley da Itália logo após o incidente que resultou na morte do seu discípulo Raoul Loveday na chamada Abadia de Thelema; a viúva de Loveday, Betty May, culpou Crowley pela morte de seu marido, que teria sido obrigado a consumir sangue animal contaminado, causando um estardalhaço do qual o Sunday Express aproveitou-se. Porém, no laudo consta morte por febre entérica, contraída por beber água contaminada na montanha. Crowley nunca foi condenado por nenhum tipo de crime contra a vida de pessoas. Nem contra a de Loveday.
Em um momento em que o preconceito e o conservadorismo encontram-se em ebulição, querendo retomar a força de outrora, é interessante observar Aleister Crowley não apenas como um lunático, mas sim como alguém que pagou o preço por sua liberdade, por suas experiências mágicas, enteógenas e sexuais. Sobre esse último dado, é importante lembrar também que manter relações homossexuais era considerado um crime na Inglaterra e no País de Gales até 1967, na Escócia até 1980 e na Irlanda do Norte até 1982. Talvez o jornal Sunday Express tenha enxergado perversidade e malignidade nas práticas sexuais de Aleister Crowley (1875-1947), que se relacionava igualmente com mulheres e com homens.
Em vários níveis de conhecimento, uma revisão a respeito de Crowley é necessária. A partir dessa revisão pode-se compreender a importância de seus ensinamentos para a revolução sexual dos anos 1960 e 1970. Talvez, num certo sentido, Aleister Crowley foi Queer antes da Teoria Queer, teoria que rechaça as identidades binárias, assume a identidade como algo fluído e variado, e abraça todo tipo de sexualidade marginalizada. O termo Queer, inicialmente pejorativo e usado como forma de agressão, foi apoderado pelo movimento homossexual e convertido em algo positivo; como diria a teórica Judith Butler, uma renovação completa do vocábulo. Curiosamente, a mesma renovação que Crowley fez ao adotar o epíteto de A Besta. Reza uma das tradições, em torno da origem do apelido pelo qual Crowley adotaria para toda sua vida, de que essa seria a forma pejorativa pela qual sua mãe, extremamente religiosa, o tratava desde a infância: A Besta. Seus pais eram parte dos “Irmãos Exclusivos”, uma facção conservadora da denominação cristã chamada de “Irmãos de Plymouth”. Seu pai era um pastor devoto dessa seita, leitor constante da Bíblia; sua relação com o seu pai era boa, mas com sua mãe não era das melhores. Assim, assumir para si o que antes era um termo pejorativo, foi um gesto determinante na vida de Aleister Crowley.
Estabelecendo uma doutrina mágica para a descoberta da Verdadeira Vontade através da Lei de Thelema, também conhecida como a Lei do Faz o que Tu Queres, Aleister Crowley influenciou uma série de artistas e pensadores do Século XX. David Bowie encarnou uma persona chamada The Thin White Duke para a composição do álbum Station to Station (1976). Este alter-ego retrata um homem com problemas, que canta músicas românticas, mas é totalmente insensível em termos de sentimentos. Duke tinha cabelo loiro platinado e geralmente vestia-se com camisa branca, calças pretas e colete. Era um personagem totalmente calcado numa interpretação dos trabalhos de Crowley e, não por acaso, faz parte da época mais polêmica do cantor.
Outra associação que não é muito lembrada em torno da importância de Crowley para a Revolução Sexual é o fato de que o popular autor e pesquisador norte-americano Alfred Kinsey, considerado um dos pais da sexologia, era um simpatizante e seguidor de Aleister Crowley. Em 1948, Alfred Kinsey criou uma escala para medir a sexualidade humana, enfatizando a diversidade. Ainda que sua pesquisa também tenha sido alvo de críticas pela falta de apuro científico, Kinsey foi um pioneiro, revolucionando os estudos sobre sexo e relacionando a fluidez ao seu debate. Kinsey também foi grande amigo de Kenneth Anger, cineasta referência para diretores como Martin Scorsese e David Lynch e um famoso mago integrante de sociedades secretas ligadas à Aleister Crowley. Vemos aqui uma foto de Kinsey (à esquerda) e Anger (à direita) posando na já citada Abadia de Thelema.
Nesse sentido, o filme Thelma (2017) de Joachim Trier, mostra-se relevante ao trabalhar uma história de formação de uma jovem adolescente e a descoberta de suas vontades. A personagem principal, Thelma, é solitária, passando pelo primeiro ano de sua graduação e vivendo em um apartamento pouco mobiliado. Sem amigos e distante dos pais, Thelma em determinado momento começa a sentir uma força desconhecida, poderes sobrenaturais surgindo, no exato momento em que seus olhos observam pela primeira vez a colega chamada Anja. A forma como Trier trabalha os poderes de Thelma assemelham-se a certo toque contemporâneo oriundo das histórias de super-heróis, o que torna tudo muito agradavelmente pop. Joachim Trier, dessa forma, distancia completamente a sua narrativa dos filmes mais ambiciosos esteticamente do seu primo Lars Von Trier. Joachim faz questão de dizer em entrevistas que não tem muito contato com seu primo mais conhecido.
Thelma não sabe o que há de errado com ela. Como nas antigas gravuras de bruxas, as cobras negras e os melros viajam perto de Thelma e às vezes em seu corpo. Como nas transcrições dos julgamentos de bruxas, as emoções de uma jovem podem literalmente matar, e os ataques de Thelma, como os chamados episódios convulsivos de possessão satânica, acabam não sendo o que parecem. Acabam sendo expressão de um desejo, de uma Vontade Queer. Curiosamente, Thelma, uma variação da palavra grega Thelema (que significa Vontade), também foi criada por pais extremamente religiosos, assim como Aleister Crowley. Joachim Trier alinhou perfeitamente os poderes sobrenaturais de Thelma com a descoberta Queer (particularmente a de uma jovem mulher) de maneiras inesperadas. É particularmente interessante que seja um homem que, utilizando-se de empatia, faça um filme sobre uma mulher jovem e bonita que não tem vergonha das forças que seu próprio corpo e sua mente podem desencadear.
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